Numa derrota para o governo Bolsonaro, o Senado instalou nesta terça-feira (27) a CPI da Covid. O começo dos trabalhos teve manobras que não conseguiram adiar a comissão nem evitar que o senador Renan Calheiros fosse o relator.
A tropa de choque do governo atuou em duas linhas de frente. Na primeira, os governistas alegaram que Renan Calheiros, do MDB, não poderia ser relator porque o filho dele, Renan Filho, é governador de Alagoas. Um dos pontos que serão investigados pelos senadores é a transferência de verbas federais para os estados.
O filho do presidente Jair Bolsonaro, senador Flávio Bolsonaro, do Republicanos, que não é integrante da CPI, foi à sessão. Crítico do isolamento social, ele reclamou que a comissão poderia causar aglomerações. Flávio, como outros governistas, exigiu que a CPI cumprisse decisão liminar da Justiça Federal do Distrito Federal, que proibia a votação em Calheiros, embora o regimento do Senado estabeleça que o cargo de relator é indicação do presidente da CPI.
Foi um dos primeiros debates da comissão. “Assim, deve ser interpretada a participação não só como membro da CPI, mas também como relator da CPI, posição da qual terá incumbência de consignar as conclusões da comissão com o risco de parcialidade por conta do vínculo sanguíneo”, disse o senador Jorginho Mello, do PL-SC.
“Invocar a questão da suspeição de quem quer que seja, especialmente do relator, na minha avaliação é equivocado, até porque o relatório a ser apresentado tem que ser aprovado pela maioria dos senadores. Nós já tivemos CPIs aqui em que o relatório que foi aprovado foi um relatório feito por alguém que contestava o relatório original”, afirmou o senador Humberto Costa, do PT-PE.
Antes mesmo de qualquer decisão, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região cassou a liminar contra Renan. Os governistas ainda tentaram uma outra estratégica. O senador Ciro Nogueira, do Progressistas, alegou que o regimento do Senado não permite que um senador seja titular ao mesmo tempo em duas CPIs, o que tiraria da comissão Otto Alencar, Renan Calheiros, Eduardo Braga e Humberto Costa, todos contrários ao governo. Os quatro decidiram ficar exclusivamente na CPI da Covid, abrindo mão de outras comissões.
Depois de mais de duas horas de tentativas de segurar a instalação da CPI, as manobras dos governistas chegaram ao fim. E Otto Alencar, do PSD, que comandava os trabalhos por ser o senador mais velho da CPI, iniciou a votação para escolha do presidente e do vice-presidente da comissão.
A disputa pelo comando ficou entre o senador Eduardo Girão, do Podemos, candidato com o apoio do Palácio do Planalto, e Omar Aziz, do PSD, apoiado pela oposição. Aziz venceu por oito votos a três. E Randolfe Rodrigues, da Rede, que se candidatou sozinho, foi eleito vice-presidente da CPI. Ciro Nogueira, aliado do Planalto, surpreendeu ao declarar voto em Omar Aziz. Já se sabia que Aziz teria sete votos e venceria a eleição. Nogueira também parabenizou Renan Calheiros.
“A imprensa está aqui toda me ligando perguntando se eu votei no senhor. Eu votei no senhor. Dos motivos que eu votei no senhor, senhor presidente, foi o que o senhor me disse, que será um presidente imparcial. Parabenizar aqui o senador Randolfe e dizer ao senador Renan Calheiros. Agora, nesse atual momento, eu não vejo obstáculo nenhum para o senhor ser relator da CPI”, disse o senador Ciro Nogueira, do PP-PI.
Calheiros e Aziz dizem que vão responsabilizar culpados
Tanto Renan Calheiros como o presidente da CPI, Omar Aziz, criticaram a situação em que o Brasil se encontra na pandemia e afirmaram que vão responsabilizar os culpados.
Omar Aziz disse que a comissão vai investigar fatos, não pessoas.
“Não dá para a gente discutir questões políticas em cima de quase 400 mil mortos. Eu não me permito fazer isso. Eu não me permito porque infelizmente perdi um irmão há 50 dias. Porque morre gente de esquerda, de centro, de direita. Morre pastor, morre padre, morre ateu, morre umbandista. Não tem cor para a doença, não tem classe social para a doença”, afirmou Omar Aziz.
Aziz disse que a CPI será técnica, que não pode servir como vingança, mas não irá protege quem errou: “A todos os companheiros senadores que vão participar da CPI, vamos levar esse trabalho técnico sem buscar, além de nada, a verdade. A verdade. Seja contra quem for. Não fale pelo amor de Deus que alguém aqui quer proteger. Não podemos proteger ninguém que falhou ou errou em nome de quase 400 mil óbitos. Ninguém de nós aqui conseguirá fazer milagre, mas podemos dar um norte ao tratamento e ter protocolo nacional, descobrir coisas que deixaram de ser feitas e quem deixou de fazer, seja ele ministro, assessor, governador, prefeito desse país.”
Em seguida, confirmou Renan Calheiros como relator. O senador Marcos Rogério, do Democratas, contestou Aziz sobre o papel da comissão: “Vossa Excelência fala do papel dessa CPI como instrumento para fazer justiça aos brasileiros mortos pela Covid. E eu queria, respeitosamente, divergir de Vossa Excelência, porque essa CPI não tem esse papel, por mais que nós gostaríamos que tivesse, força instrumental para a formulação de políticas públicas durante a sua vigência atinente ao enfrentamento da pandemia.”
Aziz insistiu na importância da CPI dar rumos ao combate à pandemia. Depois de uma rápida discussão, a palavra foi para Renan Calheiros, que pediu 20 segundos de silêncio em memória das vítimas da Covid.
O relator criticou a tentativa do governo de barrar a CPI e interferir nos trabalhos: “ Os verdugos são inservíveis no Estado Democrático de Direito. Eles negaram apoio a esta CPI, negaram, por todo os meios, a chance de que ela fosse instaurada. Agora, tentaram negar que ela funcione com independência. O negacionismo em relação à pandemia ainda terá de ser investigado e provado, mas o negacionismo em relação à CPI da Covid já não resta a menor dúvida.”
O relator disse que cada área deve ser comandada por especialistas. Citou o sucesso dos pracinhas brasileiros na Segunda Guerra Mundial sob o comando de um militar competente e criticou o fato de o presidente Bolsonaro ter entregue o Ministério da Saúde a um general.
“No pior dia da Covid, em apenas quatro horas, o número de brasileiros mortos foi igual a todos que tombaram nos campos de batalha da Segunda Guerra. O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas? Provavelmente um morticínio. Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa, e foi isso que lamentavelmente parece ter acontecido. Temos que explicar, como, por que isso ocorreu”, disse Renan.
Ele falou do compromisso da CPI com a ciência e criticou o negacionismo: “A comissão será um santuário da ciência, do conhecimento e uma antítese diária e estridente ao obscurantismo negacionista e sepulcral, responsável por uma desoladora necrópole que se expande diante da incúria e do escárnio desumano. Essa será a comissão da celebração da vida, da afirmação do conhecimento e, sobretudo, da sacralização da verdade contra o macabro culto à morte e contra o ódio. Os brasileiros têm o direito de voltar a viver em paz.”
Renan Calheiros disse que vai apontar os responsáveis pelo caos na saúde: “Não foi o acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência, e eles, em se comprovando, serão responsabilizados. Essa será a resposta para nos reconectarmos com o planeta. Os crimes contra humanidade não prescrevem jamais e são transnacionais. Podemos preservar vidas e temos a obrigação de fazer justiça, de apontar, com responsabilidade, equilíbrio e provas, os culpados por essa hecatombe. Quem fez e faz o certo não pode ser equiparado a quem errou. O erro não é atenuante, é própria tradução da morte. O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes e eles devem ser punidos imediata e emblematicamente.”
E prometeu ser imparcial na relatoria: “Podem esperar um trabalho isento, objetivo, técnico, desapaixonado, destemido e colegiado, sem medo de absolver quem merecê-lo e sem hesitação para imputar quem é responsável. Minhas premissas são as constitucionais: a competência dessa comissão para apurar os fatos determinados, a imparcialidade e a existência de provas. Essa é uma tragédia que, tenho absoluta convicção, poderia ter sido atenuada com atitudes corretas, tempestivas, responsáveis e humanitárias.”
O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, do MDB, disse que Renan estava politizando a CPI: “A disposição do governo é de colaborar. E aqui reitero: agora, é evidente que a gente está vendo, seja pelo discurso inicial do relator, seja pela disposição de outros membros da Comissão Parlamentar de Inquérito, que nós vamos ter uma comissão altamente politizada. Então, eu acredito…”
Renan Calheiros: “Não da nossa parte, não da nossa parte.”
Próximos passos
No fim da sessão, o senador Renan Calheiros apresentou um plano de trabalho para a comissão. O roteiro inclui uma série de pedidos de informações ao governo federal.
Documentos sobre negociações e compra de vacinas e insumos; sobre isolamento social e quarentena; medicamentos sem eficácia comprovada e tratamentos precoces indicados pelo Ministério da Saúde; os contratos e convênios que resultaram em repasses de recursos da União para estados e capitais; informações de Manaus sobre os pedidos de auxílio e envio de suprimentos hospitalares, em especial oxigênio; e as respostas do Executivo Federal.
Os senadores também vão requisitar à CPI das Fake News e ao Supremo Tribunal Federal o compartilhamento das investigações sobre a disseminação de mensagens falsas.
Renan Calheiros sugeriu ainda convocar para depor como testemunha os quatro ministros da Saúde do governo Bolsonaro: Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich, Eduardo Pazuello e o atual, Marcelo Queiroga. O relator quer chamar para depor também o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres.
O roteiro proposto por Renan terá que ser aprovado na CPI. O presidente Omar Aziz deu até esta quarta (28) ao meio-dia para os senadores apresentarem sugestões de trabalho. Na quinta-feira (29), a CPI volta a se reunir para bater o martelo sobre os passos a serem seguidos. O primeiro depoimento, de Henrique Mandetta, deve ocorrer na terça-feira (4).
Até agora, os senadores apresentaram 158 requerimentos à CPI, entre pedidos de informação e de convocação e convites para depoimentos.
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