Há uma discussão quase interminável sobre os riscos do bolsonarismo para a democracia brasileira e sobre o quanto as instituições democráticas têm sido capazes de pôr freios aos abusos do atual governo. E há bons motivos para isso, tendo em vista o autoritarismo professo do presidente da República e de muitos de seus auxiliares e apoiadores.
É no contexto desse debate que se inscreve a análise de meu colega de FGV Carlos Pereira, em sua coluna do Estadão do dia 10 de janeiro último, sobre o que para ele seria o caráter fantasmagórico dos perigos de um segundo mandato bolsonaresco para o o regime hoje vigente no País. Segundo Pereira, a reiterada contenção do autoritarismo presidencial durante este primeiro mandato, ilustrada por diversos episódios em que ele teve suas ações bloqueadas ou corrigidas, demonstraria que não há riscos de uma inflexão autoritária se porventura Bolsonaro vier a ser reeleito.
A análise de Pereira foi objeto, nesta semana, de uma crítica de Celso Rocha de Barros, em sua coluna das segundas-feiras na Folha de São Paulo. Nela, Barros aponta que nada do que Pereira observa em sua coluna e num ótimo livro de que é coautor, lidando com o mesmo tema, leva em consideração situações graves e inusitadas como as ocorridas durante o período bolsonaresco - – a crise dos comandos militares, o abortamento do manifesto empresarial pela democracia, o 7 de Setembro golpista, o financiamento governamental da mídia bolsonarista, a deslegitimação do processo eleitoral, a captura da PGR, o constante choque entre Poderes e a partidarização das Forças Armadas.
Se, por um lado, Pereira aponta o quanto as instituições foram capazes de impor limites ao autoritarismo bolsonaresco, tornando pouco críveis suas ameaças, por outro, Barros observa o quanto elas falharam em fazê-lo no tempo hábil e de forma mais mais efetiva, evitando estragos sérios – como as milhares de vidas perdidas para a Covid-19 em decorrência da incúria sanitária do governo federal, especialmente no concernente ao atraso no início da imunização.
A esse respeito, vale notar que o infectologista Pedro Hallal, da UFPEL, comparando os números brasileiros com os de outros países, estima que poderiam ter sido evitadas cerca de 80% das mortes produzidas pela pandemia. Ou seja, 480 mil pessoas poderiam ainda estar vivas, fosse a atual gestão federal um governo normal e não a tanatocracia caquistocrática a que estamos submetidos. Noutras palavras, diferentemente do que afirma Pereira numa réplica a Barros, a gestão de Bolsonaro não é um mero “governo ruim”, mas um que viola nosso pacto civilizatório no que ele tem de mais elementar – e expresso constitucionalmente.
Danos humanos da magnitude do que o bolsonarismo produziu, ao gerar tal morticínio em massa, não são pormenores ou resultados contingentes a governos ruins - – como inegavelmente é o caso do atual que, contudo, vai muito além disso. O fato de freios institucionais e sociais terem sido ativados, evitando que os desastres fossem ainda maiores, não os torna negligenciáveis, tampouco os corrige. Não se trata de danos que, apesar dos pesares, podem ser absorvidos tranquilamente pela salutar alternância democrática no poder e compensados mediante correções de rota.
Dando mais substância a esta argumentação, as forças políticas atuantes e as instituições do Estado brasileiro foram impotentes para impedir que o desgoverno produzisse 480 mil mortes – e essas pessoas não voltam mais. Da mesma maneira, foram incapazes de coibir a escalada desenfreada do desmatamento – e a riqueza natural destruída não tem como ser recuperada por gerações, mesmo que iniciativas nessa direção sejam tomadas. É de destruição definitiva e morte que se trata, não de meros prejuízos materiais passíveis de superação, ou da correção de rumos de uma administração desastrada.
Nos dois casos, princípios fundamentais de nossa ordem política foram violados sem que houvesse meio para impedir tal coisa. Eis a quebra do pacto civilizatório.
Supor que tudo correu bem e que fomos salvos do pior sem maiores arranhões seria como imaginar, após uma guerra, que ela não tenha representado danos à humanidade porque, ao fim e ao cabo, um inimigo perverso foi derrotado militarmente. Ora, a vitória dos mais justos numa guerra pode significar a prevenção de mais destruição, mas de forma alguma elimina o desastre pregresso, que poderia ter sido impedido caso houvesse prevenção contra as causas que levaram ao conflito armado. Os que morreram em campos de batalha ou de extermínio não retornam, por melhores que sejam os termos do armistício e as penalidades aplicadas aos criminosos de guerra.
O governo Bolsonaro representa um estrago concreto em nossa ordem democrática análogo aos danos irreversíveis de uma guerra; não são apenas ameaças e não se trata de um imaginário fantasma. Isso, claro, se entendermos tal ordem de forma mais ampla, não restrita apenas à continuidade da disputa eleitoral e ao funcionamento formal dos Poderes do Estado em 2022 e depois, mas como a proteção hoje de direitos fundamentais de seus cidadãos – não por acaso previstos constitucionalmente.
Constituições democráticas – que definem nosso pacto civilizatório – são documentos que contemplam mais do que regras procedimentais de funcionamento do aparato estatal, da competição política e da tomada de decisões; elas também abrangem – inclusive os enumerando – direitos fundamentais. E isso é assim, a bem da verdade, desde configurações políticas protodemocráticas, como na constituição americana de 1787, que apenas foi aprovada porque houve acordo político entre os constituintes para que contemplasse também uma carta de direitos (Bill of Rights) no pacote de suas dez primeiras emendas, além das regras procedimentais de funcionamento do Estado.
Desse modo, como deve ser qualificado um governo que deliberadamente desrespeita prerrogativas básicas, como o direito à vida, em vez disso produzindo a morte de milhares de seus cidadãos por causas evitáveis? Quão efetivas foram as instituições estatais para impedir que isto acontecesse? E para que continuasse ocorrendo, como agora na celeuma em torno da vacinação de crianças e do passaporte sanitário? E, se as instituições não foram efetivas para assegurar o cumprimento do pacto que as embasa, em que medida se pode considerar que esse Estado democrático de direito já não tenha sido degradado?
Ou seja, o autoritarismo e o iliberalismo bolsonarescos não são nem fantasmas, nem ameaças futuras, mas uma realidade fática que já deteriora nossa ordem constitucional democrática no presente, com resultados bastante palpáveis. O prejuízo já se deu e, daqui para a frente, trata-se de, primeiro, evitar que seja ainda pior e, segundo, tentar alguma reparação, reconstruindo um país devastado. As eleições de 2022 e a posse de quem for legitimamente eleito serão cruciais para isso, mas não trarão de volta à vida aquilo e aqueles que foram aniquilados pela atual gestão. Tudo isso, claro, se não tivermos a desventura de dar ao atual presidente um segundo mandato.
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com informações CARTACAPITAL
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