Páginas

sexta-feira, 13 de junho de 2025

DENÚNCIAS EM AUDIÊNCIA EXPÔEM PRECARIEDADE DA SAÚDE

VO ar no auditório do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) no dia 29 de maio, era denso, carregado por uma mistura de esperança protocolar e desespero palpável. Autoridades e gestores públicos, munidos de dados e planejamentos.

Promotoras de justiça com o semblante grave de quem já ouviu a mesma história muitas vezes. 
E, na plateia, o verdadeiro termômetro da crise: cidadãos comuns, líderes comunitários e representantes de sindicatos, cujas vozes com denúncias diversas dariam um panorama sobre a saúde pública de Santarém.
A Audiência Pública convocada pela 8ª Promotoria de Justiça visou dar “continuidade ao diálogo socioinstitucional”, uma expressão polida para cobrar ações que, desde a audiência anterior, em janeiro, não apenas teriam estagnado, mas, em muitos casos, regredido.
A condução dos trabalhos, a cargo das promotoras de Justiça Dra. ÉvelinStaevie dos Santos, titular da 8ª Promotoria, e Dra. Maria Raimunda da Silva Tavares, que atua em conjunto, rapidamente desfez qualquer ilusão de progresso. 
Dra. Évelin abriu a sessão com uma apresentação que traduzia o sofrimento em números frios e incontestáveis. 
O panorama geral, comparando dados de janeiro com os de maio, revelava um aumento significativo nas demandas reprimidas. Pacientes idosos, pessoas com deficiência, todos viram a espera aumentar.
O nó górdio da questão, que se tornaria um símbolo da paralisia do sistema, foi exposto logo de início: a máquina de ressonância magnética está quebrada desde 2024. 
A consequência, é uma fila de espera que parece não ter fim.
A promotora questionou as hipóteses para esse colapso: seria um aumento real na procura ou, mais provável, uma “alimentação extemporânea do sistema com as demandas realmente existentes”? Em outras palavras, a represa de pacientes finalmente transbordou?
O clamor dos invisíveis: as vozes da plateia
Se os dados eram alarmantes, os depoimentos do público foram avassaladores. 
Foi o momento em que a burocracia deu lugar à dor crua. 
Beniuza Miranda, do grupo “Mulheres Vitoriosas”, que apoia pacientes com câncer, tomou a palavra e fez uma denúncia de impacto imediato: por falta de um único componente, as sessões de quimioterapia no Hospital Regional do Baixo Amazonas (HRBA) foram suspensas por dois dias, prejudicando todos os pacientes em tratamento. 
“Pedimos a aquisição de um acelerador linear pelo Estado”, suplicou, ressaltando a urgência de quem luta contra o tempo.
A seguir, Aldercley Goes da Silva, um cidadão visivelmente cansado da espera, apresentou papéis que comprovavam sua via-crúcis na fila. Seu pedido não era por um favor, mas por um direito básico: transparência. 
“A gente nunca sabe em que posição está”, desabafou. 
Sua sugestão, carregada de frustração, foi a inclusão de uma “punição real” no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para o gestor que descumprir as metas.
A crise, ficou claro, não afeta apenas os usuários, mas também esmaga os trabalhadores da saúde. 
Andrea Lima de Souza, representando o Sindicato dos Trabalhadores de Saúde do Pará, foi categórica: 
“Não houve apresentação pelo Município do que melhorou desde a última audiência no âmbito da saúde do trabalhador”. 
Ela descreveu a sobrecarga extrema dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), pedindo a inclusão de cláusulas no TAC para a realização de processo seletivo e, novamente, para a transparência das filas.
O retrato da precariedade se expandiu para além dos muros dos hospitais. 
Adailton, do Conselho Municipal de Saúde, trouxe a realidade das comunidades ribeirinhas, onde os atendimentos em embarcações são “limitados diante da necessidade das populações que esperam por meses”.
O tom dos depoimentos escalou. 
Nástia Irina, outra participante, focou suas críticas na gestão orçamentária, questionando como, de um orçamento de R$ 96 milhões no ano passado, R$ 90 milhões foram destinados a recursos humanos, e mesmo assim a atenção primária continua desassistida. 
Antônio Wagner Pimentel, em uma das falas mais contundentes, pediu o fim do diálogo e o início da “judicialização contra os entes públicos”. 
Ele foi além, sugerindo que as entidades se unissem para levar o caso à Corte Internacional de Haia, citando o “alinhamento político entre União, Estado e Município, que não tem refletido na resolução dos problemas”. 
Era o grito final de quem já não acredita nas instâncias locais.
Promessas e a realidade
Do outro lado da mesa, o Vice-Prefeito de Santarém, Carlos Martins, e o Secretário Municipal de Saúde, Everaldo Martins, enfrentaram a avalanche de críticas. 
Carlos Martins, em sua fala inicial, reconheceu a gravidade e a importância da proposta de TAC do Ministério Público, mas a tarefa de detalhar as ações coube ao secretário.
Everaldo Martins iniciou uma longa explanação, um tour geográfico e temático pelos problemas da saúde municipal. 
Na região do Arapiuns, inspecionada “in loco”, o abastecimento de medicamentos melhorou, mas persiste o “desafio da falta de profissionais”. 
No Lago Grande, a unidade de Piraquara precisa de reforma, e uma emenda parlamentar estaria destinada a isso. 
Em Arapixuna, uma nova UBS está em licitação.
Na área urbana, a aposta é no programa “Mais Médicos” e no Saúde da Família. 
Para a UPA 24h, uma obra de melhoria está prevista, e o secretário assegurou que a partir de junho haverá plantão de pronto atendimento pediátrico – uma promessa condicionada à difícil tarefa de encontrar profissionais disponíveis. 
Mencionou ainda a chegada de um aparelho de ultrassonografia da SESPA e a intenção de contratar um profissional para realizar ao menos 20 exames por dia.
O secretário abordou as filas cirúrgicas, um dos pontos mais sensíveis. 
Para cirurgias eletivas, a previsão é de 200 procedimentos até agosto. Mas o gargalo é imenso: 500 mulheres esperam por uma laqueadura. No Hospital Municipal (HMS), o número de cirurgias de ortopedia quase dobrou, mas a cidade ainda depende criticamente do serviço de neurocirurgia do Hospital Regional. 
“Nosso maior desafio é aumentar a resolutividade”, admitiu.
A resposta, no entanto, veio carregada de novas complexidades. 
A Dra. Maria Raimunda, com a incisividade de quem conhece o histórico de promessas, questionou o Vice-Prefeito sobre a evolução dos serviços desde a última audiência. 
“Sem diagnóstico não há evolução”, sentenciou, cobrando um plano claro sobre o que foi feito, o que não foi e, crucialmente, por quê.
A promotora aprofundou a investigação sobre um dos ralos de recursos e fonte de ineficiência: o serviço médico de sobreaviso. 
Ela demandou saber o custo financeiro real, o tempo médio de acionamento do profissional e, principalmente, se o serviço é efetivo. “Oito anos atrás, o argumento era que tínhamos poucos médicos. Agora temos programas de governo, faculdades médicas. 
Onde estão esses profissionais? Qual é a escuta que a Secretaria já fez sobre isso?”, provocou, expondo a fragilidade das justificativas.
O labirinto da regulação: um jogo de empurra entre Município, Estado e União
A audiência deixou claro que a crise de Santarém não é um problema isolado. 
É o sintoma de um sistema interligado e disfuncional. 
Aline Liberal, da 9ª Regional de Saúde da SESPA, tornou-se o centro das atenções ao falar sobre as responsabilidades do Estado.
Ela confirmou a necessidade de instalação do novo equipamento de ressonância, prometendo um prazo de 90 dias para operação a partir de uma reunião ocorrida em 19 de maio. 
Sobre a regulação de pacientes, explicou que é um processo complexo, baseado em critérios de complexidade e comorbidades, e que o Estado tem buscado maior transparência.
As promotoras, no entanto, pressionaram por mais detalhes sobre a fiscalização dos contratos com as Organizações Sociais (OSS) que gerenciam os hospitais regionais. 
Aline respondeu que existe um Grupo de Trabalho (GT) de hospitais, em nível estadual, que elabora os contratos e avalia as metas. Contudo, admitiu que a 9ª Regional, sediada em Santarém, não compõe este GT e participa apenas como apoio em visitas, que ocorrem a cada 90 dias, sem um cronograma fixo. 
A revelação expôs uma fragilidade na fiscalização local e direta dos serviços que mais impactam a região.
O representante do Ministério Público Federal (MPF), Dr. Vinicius Schlickmann Barcelos, acrescentou outra camada ao problema, ressaltando a “falta de participação da União nas discussões” e o desafio de estruturar órgãos e serviços públicos federais em Santarém. 
A saúde, afinal, é tripartite, e a ausência ou ineficiência de um dos elos sobrecarrega os demais.
Ambulâncias compradas e não entregues
Há meses o município de Santarém opera com um número reduzido de ambulâncias para uma cidade de mais de 300 mil habitantes. 
Na audiência foi comentado que entre 2023/2024 uma emenda parlamentar do Deputado Federal Henderson Pinto, de quase um milhão de reais, foi repassada à Prefeitura de Santarém para aquisição de 3 ambulâncias. No entanto, o valor teria sido pago a empresa CKS Veículos Especiais LTDA, e as ambulâncias não foram entregues. 
Além do prejuízo financeiro, a falta dos veículos têm dificultado os atendimentos do Samu 192. 
O secretário Everaldo Martins, questionado, disse não saber informar se os valores foram pagos, mas que o caso deve ser judicializado. 
A reportagem de O Impacto apurou que a empresa CKS Veículos Especiais LTDA, já é alvo de processo judicial movido pelo o estado do Tocantins, por não entregar veículos adquiridos. Por se tratar de recurso federal, o caso pode ser alvo de investigação do Ministério Público Federal (MPF).
As deliberações finais
A Dra. Évelin encerrou a audiência, não com um ponto final, mas com uma série de ultimatos. 
As “Deliberações” listadas na ata são um plano de ação imposto pelo Ministério Público, um cronograma apertado para forçar a entrega de resultados.
O Município de Santarém terá 20 dias para apresentar um diagnóstico completo sobre o serviço de sobreaviso, incluindo impacto financeiro e tempo de resposta dos médicos. 
Em 10 dias, deverá apresentar um diagnóstico sobre os serviços nas unidades básicas, detalhando horários, disponibilidade de medicação e a causa da demora em exames. 
No mesmo prazo, terá que dar publicidade ao fluxo de ortopedia e demais contratos com empresas privadas.
O MP também determinou a junção de informações sobre a reabilitação do SAMU a outro procedimento e a fiscalização dos contratos das OSS, mostrando que a cobrança se estenderá ao Estado.
A audiência de 29 de maio não curou o sistema de saúde de Santarém. 
Mas, como um exame de diagnóstico por imagem, revelou com clareza brutal a extensão da doença. 
Expôs um sistema com órgãos vitais comprometidos: a atenção primária sobrecarregada, a média e alta complexidade paralisadas por equipamentos quebrados e filas intermináveis, e uma gestão que, enredada em sua própria burocracia e no jogo de responsabilidades, parece ter se esquecido do paciente na ponta da linha.
O Ministério Público deu o seu recado. 
Agora, a população aguarda, com a urgência de quem não pode mais esperar, para ver se o tratamento prescrito será, finalmente, administrado.
Fonte : O Impacto

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Participe do Blog do Xarope e deixe seus comentários, críticas e sugestões.