sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Chile repete argumentos de brasileiros em 2018 e pode eleger fã da ditadura



Um candidato é de centro-esquerda. Fala em melhorar o sistema de saúde, em ampliar o acesso à educação, dialoga com grupos sociais, como povos originários e feministas.

O outro candidato é de extrema-direita. Cultua a ditadura militar. Como plataforma principal, tem o combate a um suposto comunismo, promessas de "melhorar a economia", baseado em uma plataforma liberal.
Poderia ser a eleição brasileira de 2018, mas é, na verdade, a corrida eleitoral chilena de 2021. O primeiro é o jovem Gabriel Boric, de 35 anos, ex-líder de movimentos estudantis e atualmente deputado. O segundo é José Antonio Kast, de 55 anos, ex-deputado e assumidamente fã de Augusto Pinochet, ditador chileno.

Gabriel Boric teve 25% dos votos válidos. Aos 35 anos é pintado pelos opositores como um jovem inexperiente e, "mais perigoso que tudo", como um comunista - o que não é verdade. O programa do ex-líder estudantil é dividido em 13 tópicos, como saúde, feminismo, educação, recuperação pandêmica, pensões, crise climática e outros. Boric fala em aumentar o acesso às escolas, ampliar o investimento na saúde pública e pretende ainda criar nova políticas em relação aos direitos humanos.

Na noite de domingo, Boric terminou o discurso dizendo que "a esperança vai vencer o medo". Lembra alguma coisa?
Gabriel Boric, candidato da frente Apruebo Dignidad, representante da esquerda, disputará o segundo turno com Kast (Foto: Cris Saavedra Vogel/Anadolu Agency via Getty Images)

José Antonio Kast, por sua vez, teve 28% dos votos. Longe de ser um outsider político, é ex-deputado e já tentou a eleição anteriormente. Em 2017, disse que Pinochet votaria por ele, caso o ditador estivesse vivo. No programa de governo, o político prega a manutenção do sistema de previdência privada e alega que o mecanismo estaria prejudicado pela falta de empregos no país. Kast fala ainda em redução de impostos e promete construir mais prisões. Sobre saúde, propõe que o assunto seja "regionalizado"

Na noite de domingo, Kast afirmou que o Chile deveria fugir "dos rumos de Cuba e da Venezuela". Lembra alguma coisa?
O nacional-populismo

José Antonio Kast faz parte de uma onda que começou há alguns anos, com a Itália caindo nas mãos da extrema-direita. Os Estados Unidos tiveram esse momento, com Donald Trump, e o Brasil vive o mesmo, com Jair Bolsonaro. É uma cifra de líderes diferente daquilo que conhecíamos há anos, que tomaram o poder por meio de golpes.

Os autores Matthew Goodwin e Roger Eatwell definem esse fenômeno como "nacional-populismo". São políticos que colocam na ordem do dia defender os interesses da nação, dando voz "a pessoas que se sentem negligenciadas e mesmo depreciadas por elites distantes e frequentemente corruptas".

A ideologia nacional-populista é regida por quatro princípios: desconfiança, destruição, privação e desalinhamento. São os sentimentos negativos que regem o sucesso destes líderes. Quem tem muito teme perder seus privilégios, enquanto quem tem pouco teme ficar definitivamente sem nada.

Os eleitores desses líderes são pessoas que se veem afastadas das instituições, que se entendem como invisíveis. No caso do Chile, é importante notar que o país, regido por uma lógica neoliberal, não oferece direitos aos cidadãos, mas "liberdades". O Estado pouco se responsabiliza pelas pessoas, deixando tantas abandonadas, deixadas à própria sorte. Quando um eleitor escolhe um candidato nacional-populista, explicam os autores, eles estão tentando recuperar a voz que acreditam não ter.

No caso do Chile, há um importante e profundo contexto em relação ao comunismo e à ditadura militar. O golpe de 1971, quando Augusto Pinochet chegou ao poder, deixou marcas importantes na sociedade - claramente sentidas até hoje. Foram mais de 3 mil pessoas entre mortos e desaparecidos.
Do "estallido social" até Kast no segundo turno

Em outubro de 2019, o Chile foi tomado por manifestações populares (Foto: Marcelo Hernandez/Getty Images)

Quem olha o Chile de fora ouve falar sobre "o país mais desenvolvido da América do Sul" e até sobre "um pedaço da Europa no continente sul-americano". Números frios, como o PIB alto e o maior Índice de Desenvolvimento Humano da América Latina, escondem um país onde há muita concentração de riqueza e desigualdade.

No Chile, universidades públicas são pagas. A saúde pública existe, mas não é universal - é vinculada ao emprego (assim com o Brasil funcionava antes da criação do Sistema Único de Saúde), deixando muitas pessoas sem atendimento. O modelo de capitalização da previdência, estimado por Paulo Guedes, deixa idosos vivendo com rendas baixíssimas.

O caos social e a sensação de abandono, proporcionados pelo modelo neoliberal, levaram ao chamado "estallido social", as grandes manifestações de outubro de 2019. Como consequência direta, foi proposto um plebiscito para decidir se o Chile deveria, ou não, criar uma nova constituição. A que está em vigor até hoje é a mesma redigida durante a ditadura. O povo, em 2020, votou pelo "apruebo" e pela "convención constitucional", isto é, aprovaram que uma nova constituição fosse escrita por pessoas eleitas pelo povo, com leis que exigiam a paridade de gênero e representantes diversos. Em 2021, os chilenos elegeram seus representante, com um viés majoritariamente progressista.

Muitos se questionam como o Chile, após o "estallido social" (que nada tem a ver com as Jornadas de Junho de 2013, que tiveram caráter conservador, diferentemente do que ocorreu entre os chilenos), com uma nova constituição sendo escrita, tenha chegado ao segundo turno com um candidato e extrema-direita como favorito. É difícil responder, é desafiador analisar uma situação ainda em curso, mas, talvez, uma explicação seja que grandes mudanças geram ainda mais medo na população. Tantas possibilidades de mudança assustam e fazem com que o conservadorismo ganhe espaço.

Brasil 2018 x Chile 2021

José Antonio Kast e Gabriel Boric estão no segundo turno da eleição chilena (Foto: ERNESTO BENAVIDES/AFP via Getty Images)

O Brasil é um exemplo usado pelos autores Matthew Goodwin e Roger Eatwell para explicar a ascensão do nacional-populismo. A eleição de 2018 foi marcada por disputas de narrativa e movida pelo medo e por ressentimentos. Kast já ganhou a alcunha de "Bolsonaro chileno" por ter relativizado a ditadura chilena, se posicionar contra o casamento igualitário, reclamar de livros infantis que normalizam uma criança ter dois pais, se colocar contra o aborto e por cultuar "valores cristãos".

O candidato da direita no Chile também reforça a guerra contra as drogas, a luta contra o narcotráfico, fala da vontade do cidadão de andar na rua sem sentir medo. São sentimentos individuais que juntam milhares de cidadãos com medo, que não querem ser assaltados ao sair na rua ou ser ameaçados por traficantes.

Boric, por outro lado, tem propostas de teor mais coletiva, a democratização de direitos, argumentos que prezam mais por um olhar abrangente para uma sociedade cheia de problemas estruturais.

Cada sociedade, com seus diferentes traumas, sente medo de mudanças compreendidas como radicais, mesmo que alguns seja diretamente beneficiados por elas. Há, ainda, a "mão invisível do mercado", que, com suas projeções, piora a economia se o candidato da centro-esquerda perde. A interferência é direta e mobiliza também parte significativa da sociedade, deixando o medo ainda maior.

É impensável e fantasioso afirmar que Boric, por exemplo, tiraria dos chilenos suas propriedades privadas. Mas esse é o tipo de discurso que é usado para que a população tema qualquer tipo de mudança, mesmo de quem tem tão pouco. No Brasil, esse argumento é repetidamente usado contra o PT - mas o único presidente que já fez isso foi um de direita, Fernando Collor de Mello.

As notícias falsas também existem no processo eleitoral do Chile. Um deles, disseminado pela direita, é que, caso Kast vença, a Assembleia Constituinte vai limitar mandatos presidenciais a um ano e, caso Boric ganhe, aumentará para seis anos. É difícil dizer se a população realmente acredita nisso ou se querem acreditar, para terem argumentos para votar em alguém abertamente homofóbico e admirador de ditadores.

Mesmo sem serem, os candidatos são colocados como "dois polos opostos", ambos extremos - Kast da direita, Boric da esquerda. Como se os dois fossem ameaças à democracia chilena. Parece um o futuro repetindo o passado. Há, ainda, mais algumas semanas até o segundo turno, no dia 19 de dezembro. Até agora, é tudo bastante parecido com o cenário do Brasil em 2018, resta saber se o futuro será diferente.



com informações Yahoo

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