De acordo com as regras eleitorais de 2024, a disputa para vereador em todo o país deverá ficar concentrada em candidaturas que consigam atingir um quinto do quociente eleitoral, minimizando o papel dos partidos. Candidatos que não atingirem esse percentual ainda poderão se eleger, mas serão alocados em uma espécie de “final de fila”.
Embora pareça complicado, o fundamento é simples: se um município teve 10 mil votos válidos e 10 vagas para vereador, o quociente eleitoral é de mil votos. Assim, para cada mil votos que um partido (ou federação¹) obtiver, ele terá direito, a princípio, a um mandato no legislativo local.
Arredondamento
Na prática, resultados exatos são impossíveis, por isso são necessários arredondamentos, conhecidos legalmente como sobras.
Essas sobras consideram não apenas a parte fracionária após a vírgula, mas também a parte inteira, geralmente favorecendo partidos grandes em detrimento de pequenos e médios².
Cadeira cheia e cadeira arredondada
Se uma chapa alcançar, por exemplo, 1,6 quociente e conseguir a segunda vaga no arredondamento, então a primeira será considerada cheia; e a segunda, arredondada.
As exigências para ocupar essas cadeiras são distintas: para preencher uma cadeira cheia, o candidato precisa de 10% do quociente, conforme o artigo 108 do Código Eleitoral.
Para a cadeira arredondada, inicialmente, são necessários 20% (caso o seu partido tenha passado dos 80%), até que todos os candidatos dessa dupla característica sejam esgotados, momento em que os demais candidatos começarão a ser aceitos.
O preceito dos 20%, contudo, expressa uma contradição: se o segundo mais votado do exemplo acima precisa atingir 20%, então, evidentemente, o primeiro terá ultrapassado tal marca. Essa aparente incoerência acaba por “queimar cartucho” da primeira fase com candidatos “≥20″³.
Três fases
Conforme entendimento do STF⁴ em 28/02/2024 sobre o Capítulo IV do Código Eleitoral, a distribuição das vagas de vereador e deputado ocorrerá nessas três fases:
1ª fase: cadeiras cheias, a regra do 100/10
Esta é a fase mais simples de entender, tratando apenas da parte inteira do quociente partidário. Os mais votados de cada chapa serão eleitos dentro da cota partidária, desde que passem de 10% do quociente, sendo eleitos pelo “quociente partidário” (QP) do art. 107 do Código Eleitoral.
No exemplo de 1,6 quociente, estamos falando do “1” inteiro. Em 2020, Belém distribuiu dois terços das vagas nessa fase; Santarém, metade.
2ª fase: sobras com a regra do 80/20
Para distribuir as vagas de sobras, é necessário inicialmente respeitar a regra do 80/20: a chapa precisa ter obtido pelo menos 80% do quociente, enquanto o candidato precisa ter tido no mínimo 20%.
Esta fase é eixo central deste texto, pois coloca os candidatos com mais de 20% em uma posição de destaque extraordinário. Pouca gente conseguirá chegar aqui.
3ª fase: sobras sem restrição
Quando não houver mais chapas com essas duas características juntas, todas as legendas retornam à disputa para preencher as vagas restantes.
A questão é que esse momento dificilmente chegará, algo similar à posição dos acionistas na fila para formalmente receber algo da massa falida de sua própria empresa.
Simulações
Simulando o resultado original de 2020 sob as regras de 2024, todas as cadeiras de Belém teriam sido preenchidas até a segunda fase, restando nenhuma para a terceira. De todos os 32 nomes ≥20, apenas um não seria eleito — porque seu partido não atingiu 80%.
Seriam aceitos tão somente quatro vereadores abaixo dos 20% (porque lideravam legendas leves), ao passo que naquele ano foram aceitos dez. Ou seja, seis mandatos mudariam de mãos.
Em Santarém, algo muito similar ocorreria: todos os assentos também teriam sido preenchidos no máximo da segunda fase; 11 seriam eleitos na primeira; ao passo que 12 candidatos estariam aptos para concorrer a 10 sobras — o mecanismo conduz poucas pessoas para essa fase intermediária.
Seis vagas mudariam de ocupantes e apenas um vereador conseguiria ser eleito com <20%, igualmente porque encabeçava seu partido leve (em 2020, seis foram eleitos com menos de 20%). Em ambas as cidades, o fluxo geralmente é de partidos menores perdendo vagas e maiores ganhando.
Comportamento
Evidentemente, a mudança nas regras provoca mudança no comportamento dos envolvidos. Por isso, para 2024 se espera que mais candidatos consigam ultrapassar a marca dos 20% do que em 2020: um resultado com os eleitos tendo votações mais pesadas, ao passo que os suplentes tenham sufrágios mais magros.
Ao longo dos quatro anos, os suplentes poderão assumir o mandato independentemente do percentual obtido.
A nova regra tende a gerar uma “majoritarização” da eleição proporcional: uma relativa desconexão entre o percentual de votos recebido por cada partido e o percentual de mandatos a eles atribuídos. Ficará mais difícil montar prognósticos eleitorais: o volume de assentos a priori conquistáveis por cada legenda segue previsível, mas o volume de candidatos ≥20 dentro de cada agremiação será um terreno instável.
A expectativa pela regra do 80/20, na qual as sobras ficam dando voltas até encontrar chapas ≥80 e, ao mesmo tempo, candidaturas ≥20, é a única explicação para o fato de que haja um volume tão grande de atuais vereadores dentro de um mesmo partido, localmente falando.
No passado, a tendência era de um certo espalhamento partidário nas tentativas de reeleição.
Ponto de corte
Quanto menor for o município (em volume de mandatos na câmara municipal), mais severos esses 80% agirão como ponto de corte para que as chapas disputem vagas, podendo conduzir a resultados similares à eleição de deputado federal no Pará em 2022, quando (i) ser um político de segunda magnitude de um partido grande lhe dava chances de vitória maiores do que (ii) ser o maior nome de um partido mediano.
Naquela oportunidade, um terço dos votos foram confiados a partidos que não atingiram o sarrafo, gerando um cálculo generoso de sobras em favor dos que atingiram.
Do 80/20, é factível que quanto menor for o município, mais o 80% grupal seja o mecanismo preponderante e, por outro lado, quanto maior o município, mais o 20% individual seja o elemento proeminente. Porque quanto mais cadeiras, mais achatado o quociente vai percentualmente ficando.
Por fim, cerca de quantos votos esses 20% deverão representar em Santarém e Belém? Respectivos 1.600 e 4.000 votos.
¹ A partir de 2022, federação é uma espécie de coligação nacional entre dois ou mais partidos. Deve durar no mínimo quatro anos e foi vista como uma certa compensação à proibição de coligações para proporcionais, ou seja, para vereador e deputado.
² Por exemplo, se uma chapa obteve 1,6 quociente, então seu cálculo não considerará apenas o 0,6, mas sim o volume de cadeiras que a chapa pleiteia (2) divididos pelo volume de quocientes recebidos (1,6) = 1,6 / 2 = resultando em 0,8. Já um partido com 4,1 quocientes obteria o resultado 0,82 na disputa pela quinta vaga (4,1 / 5 = 0,82): fazendo com que, neste exemplo, o último partido tenha preferência para subir de 4,1 para 5 do que o menor de subir de 1,6 para 2.
³ Ainda no exemplo de 1,6 quociente conquistando duas cadeiras: se os dois nomes mais votados conseguiram 12% e 11%, apenas o primeiro está eleito. A segunda vaga irá para sobra.
⁴ Distribuição das “sobras eleitorais” no sistema eleitoral proporcional – Link https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/informativoSTF/anexo/Informativo_PDF/Informativo_stf_1126.pdf
Alan Lemos é contador com experiência em contabilidade eleitoral e prestação de contas eleitorais aprovadas, além de mestrando em Ciência Política pela UFPA (Universidade Federal do Pará). Contato: (91) 9.8506.1818.
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