Orley José da Silva |
As
unidades escolares da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Goiânia
receberam no começo deste semestre letivo os livros recomendados pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC). Os
professores de cada disciplina escolhem entre livros de visão parecida, uma
coleção que lhes sirva de apoio durante as aulas nos próximos anos. Esta
escolha, no entanto, tem sido dolorosa para boa parte dos professores que se
sentem inconformados com a linha de doutrinamento político e ideológico das
editoras participantes deste Programa. Elas reproduzem, em seus livros, a compreensão
governamental sobre sociedade e educação que é de acordo com seus preferidos
intérpretes do marxismo e do relativismo filosófico. Pelo visto, o Governo tem
a escola como espaço privilegiado para empreender o seu processo de
subjetivação coletiva, que visa construir uma sociedade socialista,
secularizada e relativista.
Há
em alguns destes livros didáticos uma pretensa vontade de direcionar a formação
política do aluno quando textos e imagens divulgam programas sociais do Governo
Federal; exaltam conhecidas figuras políticas do socialismo brasileiro e
estrangeiro; relê períodos econômicos e históricos da nação; sublima nomes
importantes do Governo; ironiza partido político oposicionista e conhecidos
membros da oposição. Considerando que o próximo ano é eleitoral, pode-se
entender que a promoção de personalidades do Governo, da sua base política e do
modelo socialista e sustentável de governar, mesmo que implicitamente, tenha a
intenção de formar opinião política, partidária e ideológica na escola.
A
compreensão da ética, da moral e dos costumes em conformidade com o relativismo
do secularismo contemporâneo e a interpretação marxista do laicismo, são valorizadas
nesses livros didáticos. Essas influências, inclusive, mudam o sentido de laico
que prevaleceu até o início do século passado nas democracias americana e
inglesa, que estão entre os modelos inspiradores da Constituição brasileira de
1988. O poder de hoje incentiva a ressignificação destes termos para adequá-los
à sua ideologia. Chega-se, assim, a um relativismo caolho porque ofusca e
também apaga valores fundamentais do cristianismo que insistem em permanecer na
sociedade. Em anos anteriores, estes valores foram diminuídos nos livros
didáticos, mas nos livros do próximo ano, estes sinais estarão ainda mais
diluídos. Ao valorizar o esotérico e o místico, vestidos de maneiras alternativas
de espiritualidade e cultura, permite abstrair que as obras escolares transitam
num delicado terreno de compensação e/ou substituição simbólico-ideológica.
É
natural as famílias confiarem na isonomia da escola pública para respeitar os
fundamentos que as sustentam, mas é bom que elas se preparem para a possível
quebra desta confiança com a chegada, em suas casas, de livros
apresentando-lhes uma nova configuração de família. As famílias também
precisarão aprender lidar com a censura e o enfrentamento dos filhos
doutrinados pela escola em discursos diferentes dos seus, relacionados ao
corpo, ao comportamento e à prática social. Os livros, por exemplo, trocam o
visual comportado de pessoas que aparecem em imagens ilustrativas, pelo estilo
diferente das tribos urbanas ou sociedades alternativas. E é esta imagem de
corpo que os autores buscam popularizar e normalizar a partir de algumas capas
de livro, introdução de capítulos e interior dos textos, mesmo sabendo que esta
imagem de corpo não predomina entre os jovens da periferia conservadora de
Goiânia.
Um
aspecto relevante encontrado em alguns destes livros, é o esforço deliberado de
desconstrução do modelo tradicional de família nuclear: pai, mãe e filhos. Em
um livro de espanhol para o 6º ano, cujos alunos de 12 anos de idade estão em
formação da personalidade, no capítulo que fala sobre a família, logo na página
de apresentação há o modelo do interfone de um prédio de quatro andares
composto de dois apartamentos por andar. Ao lado do número do apartamento lê-se
a descrição do tipo de família que ali habita. No apartamento 101, moram “Dos
mujeres, su hija.”, cuja tradução é: “Duas mulheres, com a filha delas.” Na
base do interfone, surge a inscrição: “No hay familias modelo, simplemente,
modelos de família.” que em português é: “Não há famílias modelo, simplesmente,
modelos de família”. Na página seguinte,
quando o texto passa a discorrer sobre as características familiares, há
imagens iconizadas representando alguns tipos de família e, entre eles, o de
duas mulheres de mãos dadas, com uma delas grávida. Pelo que se conhece das
uniões homoafetivas femininas, subentende-se que uma das possibilidades para a
gravidez desta mulher seja a inseminação artificial.
No
mesmo livro, na parte que oferece subsídios didáticos e pedagógicos ao
professor, há a seguinte orientação: “Segun la Red Nacional Católica de Jóvenes
por el Derecho a Decidir (RNCJDD), estos grupos conservadores insisten em
afirmar la relación monogâmica heterosexual, desde que se unen em matrimonio
hasta que mueren, como única opción para formar famílias, ignorando otros
modelos de família, por ejemplo: la presencia femenina como cabeza de la família
con hijas e hijos, y personas del mismo sexo con hijas e hijos.” Que traduzindo
para o português fica assim: “Segundo a Rede Nacional Católica de Jovens pelo
Direito de Decidir (RNCJDD), estes grupos conservadores insistem em afirmar a
relação monogâmica heterossexual, desde que se unem em matrimônio até a morte,
como única opção para formar famílias, ignorando outros modelos de família, por
exemplo: a presença feminina como cabeça de uma família com filhas e filhos, e
pessoas do mesmo sexo com filhas e filhos.”
Sabendo
que o livro é direcionado para escolas periféricas da cidade de Goiânia, cujo
público é hegemonicamente cristão, e que muito provavelmente o educador seja
resistente à temas da obra, os autores se valem de um discurso de convencimento
que se alinha à proposta deles. O interessante é terem buscado este argumento
aliado dentro da formação discursiva católica, considerada por eles de conservadora.
É sabido que a Igreja Católica não compartilha das ideias deste seu grupo de
jovens. Essa premissa, no entanto, tem valor simbólico importante, porque
mostra ao aluno a possibilidade de se insurgir, de rebelar-se contra os valores
estabelecidos pelas Instituições, a partir do interior delas.
Em
um dos livros de Língua Inglesa para o 6º ano, no capítulo dedicado à família,
há fotografias de modelos de família, inclusive uma com dois homens, e um deles
segura um bebê. Esta foto sugere uma relação homoafetiva masculina que adota
uma criança. Em outro livro de Língua Inglesa também para o 6º ano, na mesma
foto aparecem duas mulheres com uma criança e dois homens com duas crianças.
Pelo contexto, é possível inferir que se trata de relações homoafetivas
feminina e masculina, com suas crianças adotadas. No mesmo livro, nos
exercícios, há uma parte que pergunta sobre os tipos de família para o aluno
marcar e uma das respostas é esta: “( )
Three different families: father, mother, and son; mother, father, and three
kids; two fathers and an adopted baby.” Traduzido para o português fica assim:
“( ) Três diferentes famílias: pai,
mãe e filho; mãe, pai e três crianças; dois pais e um bebê adotado.”
Um
dos livros de Língua Inglesa para o 9º ano, cujos alunos têm em média 15 anos
de idade, tempo em que as escolhas para a vida estão sendo definidas, na parte
de subsídio didático e pedagógico ao professor há a seguinte orientação para
tratar dos assuntos mudança de sexo, mudança de nome e opção pela vida
homossexual: “A relação possível com o tema Orientação Sexual, na questão da
identidade, pode ocorrer durante a aula ao apresentar, por exemplo, casos de
pessoas que se submeteram a operações de mudança de sexo e tiveram seus nomes
alterados. Ao discutir temas delicados como esse, o professor pode optar por
fazê-lo a partir de casos de pessoas famosas. (...) ao falar sobre os casos de
pessoas que mudaram de sexo em tempos atuais, ou que, mesmo sem se submeterem à
operação, optam por viver com as características do sexo oposto, incluindo a
identidade, pode-se verificar se a História traz casos parecidos com esses no
passado.”
Estes
temas não são considerados disciplinas, mesmo assim estão presentes nelas
porque as atravessam. Portanto, de maneira interdisciplinar, espera-se que a
escola trabalhe ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, trabalho e
consumo, orientação sexual, e outros assuntos de interesse regional,
respeitando-se as características sócio-culturais dos estudantes. O problema
acontece justamente neste ponto. Os temas são abertos e passíveis de
interpretações variadas e podem ser direcionados para qualquer ideologia,
dependendo da formação discursiva que os explora. No presente caso, o MEC optou
pelo discurso que contraria a crença, os valores e a ideologia predominantes na
população. Quanto a Prefeitura de Goiânia, ela não considerou que a maioria das
crianças atendidas pelas suas unidades escolares vem de lares de tradição
cristã, o que é atestado pelo próprio IBGE.
Vale
salientar que a presente crítica não se vê ignorante quanto aos temas
científicos, mesmo porque não contesta verdades da Ciência e nem o conteúdo
curricular das disciplinas. O problema que levanta diz respeito à abordagem e
aplicação de alguns dos temas transversais em livros didáticos recomendados
pelo MEC, para o Ensino Fundamental da escola pública, a partir do próximo ano.
Este comentário também não diminui a importância dos temas transversais,
constituídos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) por entender que
eles são necessários à formação do educando para o exercício da cidadania. Entende,
inclusive, que temas como violência contra a criança e o adolescente, o
trabalho infantil, bem como a questão das drogas, poderiam ter sido mais
explorados nestas coleções. Embora tenha levantado os pontos acima, esta
crítica não se julga preconceituosa quanto ao modo de vida das tribos urbanas e
de outros grupos minoritários em comparação com a maioria. Outrossim, é
defensora ardorosa da liberdade para ações afirmativas destes grupos, do
respeito e consideração que fazem jus como cidadãos. Coloca-se contra, porém,
as ações propagadoras de costumes na escola pública, não convencionados
socialmente, julgando que é função da família e não do Estado orientar sobre
padrões de comportamento.
Lamentavelmente,
o modelo de educação pública para nossas crianças e jovens tem sido formatado
com exclusividade por iluminados técnicos do MEC, de secretarias de educação e
universidades. E quase sempre escoram no status de superioridade do discurso
acadêmico, que eles mesmos arvoram e não relativizam, como suficiente para
teorizar, prescrever e impor conteúdos que por vezes são contraditórios e
dissociados dos reais anseios da coletividade. Com arrogante autonomia, incluem
e excluem colaboradores. Neste tempo mesmo, em que importantes políticas
educacionais estão sendo implementadas no país, com influência direta no
currículo escolar, os tecnocratas silenciam a voz das maiorias, porque a
consideram conservadora, retrógrada, direitista, tradicional e reacionária. Por
outro lado, concede influência privilegiada à contribuição de minorias, para
quem é ajuda vanguardista, democrata, libertária e progressista.
Os
discursos que se sentem preteridos nas escolhas educacionais para o país, no
entanto, não devem se eximir do direito de opinar e participar para uma real
democratização do conhecimento na escola. E este momento da escolha de livros
didáticos, é importante. Sintam-se, então, conclamados a visitar uma escola
municipal e a quererem conhecer estes livros. Folheiem, reconheçam, digiram, analisem
e opinem sobre eles. Deem preferência ao exemplar do professor porque contém
orientações didáticas e pedagógicas. Embora o presente texto tenha preferido
não mencionar nomes de autores e editoras, estas informações podem ser confirmadas
pelo manuseio e exploração das obras.
Ao contrário do que diz o MEC, estas mudanças
trazem inquietação entre os professores, sim. Por mais que a Secretaria
Municipal de Educação e o MEC tenham se esforçado para oferecer-lhes cursos e
palestras nos últimos anos com a finalidade de apresentar essas novas idéias. É
de se esperar que a proporção dos educadores contrários e favoráveis às mudanças
não seja diferente do percentual encontrado na população. E, se estes livros
são capazes de chocar professores e familiares na grande cidade, não é difícil
imaginar a dimensão do impacto que suas ideologias poderão causar às famílias das
pequenas cidades e povoados do interior brasileiro, mais notadamente no sertão,
cerrado, caatinga, pampa, pantanal, ribeirinhos amazônidas, além de calungas e
indígenas.
Mas
o Governo parece querer, acreditar e contar com a modalidade de revolução que
se opera pela transformação do pensamento iniciada e fortalecida na(pela)
universidade pública. E ele também parece julgar que este é o momento de dar prosseguimento
a mesma construção ideológica em curso na escola pública, valendo-se dos
recursos humanos e de conhecimento da sua universidade. Deve ser por isso que ele
investe no aparelhamento ideológico destas duas instituições públicas para que
elas alavanquem as mudanças pretendidas na mente da sociedade. Inclusive, o
viés de abordagem dos temas transversais que aparece nos livros é uma síntese de
pesquisas, discussões, congressos, simpósios e seminários da universidade. E
muitas destas reuniões, de discussões sectárias e unilaterais. A tendência é
que a influência dos livros didáticos patrocinada pelo MEC e apoiada por
prefeituras como a de Goiânia, alcance também as escolas particulares, até
mesmo as confessionais. Isto porque o milionário mercado dos livros didáticos e
paradidáticos vive ao sabor da conveniência e segue tendências mercadológicas,
mesmo que elas movimentem a sociedade para lugares estranhos.
Orley José da Silva,é professor e mestre em
letras e linguística (UFG)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe do Blog do Xarope e deixe seus comentários, críticas e sugestões.