Xarope no túmulo de irmã Dorothy Stang, morta com seis tiros a queima roupa |
No dia 12 de fevereiro de 2015 completa dez anos do brutal assassinato da missionária Dorothy Mae Stang, aos 73 anos de idade.
Ela foi morta com seis tiros à queima roupa, um deles na cabeça, sem a
mínima chance de defesa, no município de Anapu, oeste do Estado do Pará.
Dos cinco homens julgados e condenados pelo crime, apenas um cumpre
prisão em regime
fechado, mas por outro homicídio, outros três respondem a sentença no
semiaberto (dormem na cadeia) e um ainda não cumpriu a pena.
Para Dinailson Benassuly, coordenador do Comitê Dorothy, esse é o
momento para rememorar o caso e exigir que Regivaldo Pereira Galvão,
acusado de mandante do crime, cumpra a pena de 30 anos em regime fechado.
O fazendeiro, comerciante e agiota Regivaldo Pereira Galvão, o
“Taradão” foi acusado pela investigação da Polícia Civil do Pará como
principal mandante do assassinato de Dorothy Stang. Em 2010, ele foi
condenado a 30 anos de prisão em regime fechado pelo Tribunal de Justiça
do Pará. Ficou preso por apenas 1 ano e 4 meses. Ele ganhou a liberdade
por um recurso concedido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em
2012.
O Comitê Dorothy foi criado por religiosos e ativistas dos direitos
humanos e ambientalistas após a morte da missionária e está sediado em
Belém. A pressão exercida pelos membros da entidade junto à sociedade
civil foi crucial para diminuir a morosidade dos julgamentos de crimes
impunes no Pará.
O Comitê ainda não tem formalizada a programação de eventos
que marcarão os dez anos da morte da freira, mas Benassuly garante que a
data será lembrada com a bandeira da defesa do meio ambiente e,
principalmente, da Amazônia.
A missionária e o desenvolvimento sustentável
Dorothy Mae Stang, uma mulher de estatura mediana, corpo franzino e
olhos azuis que contrastavam com os cabelos curtos e brancos, era uma
freira norte-americana nascida em Dayton, Estado de Ohio, que veio para o
Brasil em 1966. Integrante da congregação católica de Notre Dame de
Namur, seu objetivo – assim como de tantos outros missionários –, era
levar o cristianismo e pregar a paz, mas por sua veia ambientalista, ao
chegar a Anapu, ela identificou o problema fundiário e começou a
trabalhar para que o pequeno agricultor tivesse direito à terra.
Educadora, a freira ensinou inúmeras gerações de agricultores a ler e
escrever e a estudar, com o intuito de torná-los futuramente técnicos
agrícolas e poder garantir sua subsistência.
Integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja
Católica, em Anapu, Dorothy Stang liderava o primeiro projeto de
desenvolvimento sustentável, o PDS Esperança, de agricultura familiar.
Ela lutava pela regularização da terra para famílias de trabalhadores
rurais e combatia a violência das invasões ao projeto por grileiros,
madeireiros e fazendeiros.
A confiança no propósito do PDS Esperança foi o que motivou irmã
Dorothy, como era conhecida há mais de 20 anos nas regiões margeadas pelo rio
Xingu e Transamazônica (BR 230), a dedicar sua vida a esse projeto,
levantando a bandeira da regularização da terra, um dos motivos que
contribuiu para a execução do crime que tirou sua vida. Até sua morte,
sua luta era pouca conhecida fora do Pará.
Além de acreditar, a freira investiu, antes de morrer, para que os
assentados do projeto pudessem ser autossuficientes sem devastar a
floresta amazônica. Esse era o sonho e ela foi assassinada quando ele
estava apenas começando a se concretizar.
O PDS Esperança é um projeto do governo federal por meio do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) que consiste em assentar pequenos agricultores em lotes de terra, dos quais 20% são destinados à produção de maneira sustentável e 80% ao manejo florestal comunitário.
Apesar de
ser uma iniciativa federal, foi Dorothy Stang que deu visibilidade ao
PDS Esperança, garantindo que o assentamento, criado por ela em 1999,
fosse reconhecido pelo governo em 2003.
Hoje o PDS Esperança produz cacau, fruto que foi escolhido
estrategicamente por não destruir a floresta. Medicilândia, município
que também fica no oeste paraense, é hoje o maior produtor isolado de
cacau do Brasil e também o de maior produtividade do mundo.
Em vida, a freira conseguiu junto ao Incra que casas fossem construídas
para os agricultores do projeto de assentamento. Além disso, a formação
dos técnicos agrícolas – iniciativa dela – foi indispensável para que o PDS chegasse onde está hoje.
Mas segundo Dinailson Benassuly, coordenador do Comitê Dorothy, as
dificuldades ainda são grandes. Dentre elas, podem ser citadas as
ameaças sofridas por moradores das áreas do assentamento Pilão Poente
III, localizado no PDS Esperança, em março de 2014.
A luta da Dorothy não foi em vão. Além de justiça pela sua morte, continuamos atuantes. Queremos ver o PDS gerar frutos e a proximidade com Medicilândia é favorável pra gente, mesmo que as condições sejam adversas. Em alguns anos esperamos que ele se torne um grande produtor de cacau”, diz Benassuly.
Espera-se assim, que com a consolidação do PDS Esperança, bem como o
cumprimento da pena do Regivaldo Pereira Galvão, os membros do Comitê
Dorothy e a sociedade civil como um todo possam dizer que a luta de
Stang pela Amazônia – que é um bem de todos – venceu as barreiras da
impunidade e tornou mais justa a vida de quem antes não tinha direito a
terra.
E, embora ela e vários outros que defendem a regularização fundiária
tenham sido silenciados, o esforço e a dedicação de cada um deles por
uma sociedade mais igualitária, no campo, continuam eternizados naqueles
que dão continuidade aos seus trabalhos em vida.
A origem do conflito agrário no PDS Esperança
Mesmo estimulando a produção sustentável
e a preservação do meio ambiente para as gerações futuras, a luta da
missionária Dorothy Stang para regularizar o PDS Esperança não era visto com
bons olhos por fazendeiros do município de Anapu, que, em sua maioria,
criam gado – prática que, segundo especialistas, vai na contramão da
sustentabilidade, uma vez que se utiliza da devastação de grandes
espaços para criação de pasto, por meio das queimadas, devido ao baixo
custo do método.
O motivo pelo qual o PDS Esperança não era bem visto emerge do fato de
que a propriedade que os fazendeiros possuíam estava localizada
exatamente em áreas destinadas para reforma agrária e o desenvolvimento
sustentável. Por saber o destino adequado para esses latifúndios,
Dorothy Stang os reivindicava junto aos órgãos competentes, e os
fazendeiros, por não quererem perder os lotes, questionavam a retomada
da terra.
Além dos fazendeiros, alguns agricultores e madeireiros ou não
entendiam a importância de trabalhar a natureza sem esgotar os recursos
naturais, ou pior, aproveitavam-se da rentabilidade econômica da
prática. A “não aceitação” contra a freira era tanta, que a prefeitura
de Anapu e a Câmara Municipal da cidade, segundo depoimento dela,
chegaram a considerá-la persona non grata, sob o pretexto de que ela –
que lutava pelos direitos de quem não tinha acesso à terra – estaria
atrapalhando o desenvolvimento do município.
O lote 55 – área de 3.000 hectares de floresta nativa – foi o local de
disputa que ocasionou a morte da missionária. Ela defendia que o espaço
pertencia ao PDS Esperança, mas o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o
“Bida”, afirmava que a área foi vendida a ele legalmente por Regivaldo
Pereira Galvão, o “Taradão”, comerciante e agiota da cidade de Altamira.
Assim, o conflito surge da ausência, ainda hoje, da comprovação da
legitimidade dessas terras. Muito é especulado e pouco, efetivamente,
certificado. Os donos atuais das propriedades – podem tanto tê-las
comprado como também invadido. Sem a titularidade, tudo reside, apenas,
no campo das conjecturas. Mas uma coisa é incontestável: muitos
conseguem apropriar-se indevidamente de terras públicas na Amazônia, por
meio da falsificação de documentos, a exemplo da grilagem.
No documentário “Mataram Irmã Dorothy”, de Daniel Junge, a
missionária diz que o único documento que os fazendeiros possuem das
propriedades é de cartório – de compra e venda. Ela, por sua vez, tinha o
mapa indicando que a fazenda dos pecuaristas estava localizada em
território da União.
Todo esse contexto nasce em meio ao plano de ocupação da Amazônia,
criado na época da ditadura militar, na década de 60. Inicialmente, os
lotes eram cedidos a quem fosse morar na região. Hoje, o que se vê são
terrenos – cedidos por meio dos Contratos de Alienação de Terras
Públicas (CATP) – sob posse de fazendeiros que afirmam terem conseguido
as propriedades de maneira lícita. E assim, inicia-se o conflito.
Quanto mais o PDS Esperança avançava, quanto mais se desenvolvia, mais
ameaças de morte a irmã Dorothy recebia. Para Dinailson Benassuly,
coordenador do Comitê Dorothy, a freira é um símbolo de luta pela terra.
“Até hoje ela é uma inspiração pra mim e para tantos outros”, diz.
O assassinato e a Bíblia como única defesa
Era manhã de sábado, dia 12 de fevereiro de 2005, como outra qualquer
para os moradores do PDS Esperança, a 53 quilômetros de distância da
sede de Anapu, no oeste do Pará. Irmã Dorothy Stang, então com 73 anos,
vestia uma bermuda bege, blusa branca e portava, apenas, uma pasta
amarela, onde levava a Bíblia, em suas mãos. Ela caminhava em uma
estrada de terra batida em direção à casa de assentados quando foi
abordada Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Carlos Batista.
Segundo a investigação policial, a missionária Dorothy Stang chamou a
atenção dos dois homens por eles terem jogado, dias antes, sementes de
milho dentro das lavouras dos agricultores do PDS Esperança para
prejudicar as plantações. Rayfran e Clodoaldo eram contratados para
trabalhar no lote 55, do qual Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, a
alegava ser o dono.
A principal testemunha do crime, um agricultor que caminhava há poucos
metros de distância da missionária, disse que o pistoleiro Rayfran
perguntou à freira se ela estava armada. Ela afirmou: “eis a minha
arma”. E lhe mostrou a Bíblia.
Rayfran Sales disparou seis tiros contra a freira, acertando-a na
cabeça e em outras cinco partes do corpo. Dorothy Stang tombou na terra.
Naqueles dias em que a impunidade de crimes no Pará ganhou repercussão
internacional, uma força-tarefa foi montada de emergência pelo governo
federal para atuar na região de Anapu. Cerca de dois mil soldados foram
deslocados de batalhões do Exército de Belém, Manaus e Marabá com a
função de garantir a segurança de quem morava no munícipio e evitar
outros assassinatos, já que muitos amigos da missionária estavam
ameaçados de mortes, entre eles, José Amaro Lopes de Sousa, o Padre
Amaro, um dos coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e o
bispo da Prelazia do Xingu, dom Erwin Kräutler.
Em dezembro do mesmo ano, o autor dos disparos confessou, diante do
juiz, que recebeu R$50,00 pelo crime, mas que a promessa era de R$50
mil. Ao escutar tais palavras, o júri popular lamentou e Rayfran não
esboçou um só gesto que demonstrasse arrependimento pelo ato.
Na época, o Procurador Geral
da República, Felício Pontes, solicitou à Procuradoria Geral da
República, a federalização do caso, isto é, que a Polícia Federal
fizesse a investigação, uma vez que se tratava de grave violação aos
direitos humanos e havia a suspeita de que fazendeiros formalizaram um
consórcio para encomendar a morte da freira.
O pedido de federalização foi negado e o caso foi julgado pela Justiça
Estadual do Pará. A Polícia Civil do Pará investigou o crime e prendeu
os responsáveis.
O julgamento dos cinco acusados pelo crime
São cinco os envolvidos na morte da missionária Dorothy Stang. Todos
foram julgados e condenados, mas três estão cumprindo pena em regime
semiaberto. Exceto Rayfran das Neves, autor do disparo, que está preso,
mas por ter cometido outro crime. Regivaldo Pereira Galvão até agora não
cumpriu pena. Veja, abaixo, onde está cada um dos condenados:
Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão” (mandante): Foi condenado em maio
de 2010 a 30 anos de prisão, inicialmente, em regime fechado. Regivaldo
sempre respondeu em liberdade, ficou preso, apenas, no início dos
julgamentos por 1 ano e 4 meses. Hoje, mora em Altamira e aguarda em
liberdade um recurso que tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A reportagem da agência Amazônia Real tentou contato com o advogado do
Regivaldo, Jânio Siqueira, para obter mais informações sobre a defesa
dele no caso, mas ele não retornou as ligações telefônicas até o
fechamento desta matéria.
Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida” (mandante): Foi condenado em
setembro de 2003 a 30 anos de prisão em regime fechado. Em fevereiro de
2014, conseguiu encurtar a sua pena em 125 dias por trabalhos realizados
na prisão. Hoje, mora em Altamira, onde cumpre a pena em regime
semiaberto.
Amair Feijoli da Cunha, o “Tato” (intermediário): Foi condenado a 17
anos de prisão inicialmente em regime fechado. Hoje mora em Tailândia,
no Pará, e cumpre a pena em regime semiaberto. “Tato” teve a pena
reduzida pela lei da delação premiada. A pena inicial, por homicídio
duplamente qualificado, era de 27 anos. No julgamento, ele confessou que
foi contratado por R$ 50 mil pelos fazendeiros Vitalmiro Bastos de
Moura e Regivaldo Pereira Galvão. O valor seria dividido entre os
executores.
Rayfran das Neves, o “Fogoió” (autor dos disparos): Foi condenado a 27
anos de prisão, que seriam cumpridos inicialmente em regime fechado.
Assassino confesso, Rayfran foi beneficiado em 2013 com prisão
domiciliar, por apresentar bom comportamento na cadeia. Hoje aguarda
novo julgamento em regime fechado por ser acusado de matar, em setembro
de 2014, um casal em Tomé-Açu, no Pará.
Clodoaldo Batista, o “Eduardo” (coautor): Foi condenado a 17 anos de
prisão em regime semiaberto, porém não se apresentava à justiça desde
2011 – condição obrigatória exigida pelo regime. Clodoaldo sumiu, não
disse onde estava morando, não cedeu endereço, nada. Dessa forma foi
considerado foragido. Em 20 de outubro de 2014, se apresentou à Justiça
do Pará. Agora, responde à pena em regime semiaberto, tendo que se
recolher à noite para dormir em uma casa penal da Região Metropolitana
de Belém. Clodoaldo mora em um sítio, no município de Benevides, no
Pará.
Impunidade na Amazônia X Justiça
“Continuam morrendo anônimos todos os dias naquela região”, declara o
promotor de Justiça Edson Cardoso, que atuou no caso Dorothy Stang, ao
ser indagado pela Amazônia Real sobre a situação de Anapu hoje.
A afirmação, além de trazer uma perspectiva do que ainda acontece no
município, permite ir ao passado e relembrar a história de um dos
maiores ambientalistas brasileiros, que assim como a Irmã Dorothy
defendia a floresta e as populações tradicionais: Chico Mendes lutou até
sua morte em 22 de dezembro de 1988. Ela até fevereiro de 2005.
Quando o promotor fala em anônimos, se refere ao pequeno agricultor,
porque nas suas palavras “as lutas sindicais ficam cada vez mais
enfraquecidas a cada morte de líderes”. É de se imaginar que a luta é
injusta: agricultores que querem apenas um pedaço de terra para plantar e
garantir o sustento da família contra grandes latifundiários que
contavam com capatazes para defender suas propriedades.
Dessa luta, desde o pequeno agricultor até as lideranças sindicais, a
Amazônia tem muito sangue derramado em seu solo. No Pará, por exemplo, o
caso conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás” teve grande
repercussão e, apenas, dois condenados. Dois. De 146 policiais militares
julgados por terem participado do assassinato de 19 sem-terra, em abril
de 1996, sem contar os mais de 60 feridos.
Segundo dados do Ministério Público, entre 1964 e 2011, os mortos por
latifúndio, só no Pará, passam de 2 mil. Mas tanto no caso Dorothy
Stang, quanto dos “Irmãos Canuto” ocorrido em 1990 vitimando os dois
irmãos Paulo e José Canuto, o promotor Edson Cardoso conseguiu a
condenação dos mandantes. Nesse último caso, a motivação também era a
questão agrária. Eles, assim como a freira, lutavam pelos pequenos
agricultores rurais. Contudo, passaram-se 18 anos até que o assassinato
fosse levado a julgamento.
No caso de Chico Mendes – que foi um dos primeiros a atrair os olhos do
mundo para a questão da terra na Amazônia –, o fazendeiro Darli Alves
da Silva e seu filho Darci Alves Pereira foram condenados a 19 anos de
prisão. No caso Dorothy, aguarda-se julgamento do recurso no STJ, para
que Regivaldo Pereira Galvão cumpra sua pena.
* Esta reportagem especial faz parte do projeto “Amazônia Real –
promovendo a democratização e liberdade de expressão na região
amazônica” e recebe financiamento da Fundação Ford, por meio do programa
“Promovendo Direitos e Acesso à Mídia”.
(Catarina Barbosa, especial para a Amazônia Real)
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