domingo, 3 de outubro de 2021

A CURA PODE VIR DA FLORESTA: MEDICAMENTOS DERIVADOS DA FLORA AMAZÔNICA QUE PROTEGEMO O CÉREBRO


POR: Walace Gomes Leal
Professor associado IV do Instituto de Saúde Coletiva da UFOPA e do Programa de Doutorado em Biodiversidade e Biotecnologia da Rede BIONORTE.
A amazônia é uma maravilha da natureza com cerca de 5 milhões de Km2 - um celeiro inigulável de biodiversidade, correspondendo à metade das florestas tropicais do mundo. Existe há cerca de 55 milhões de anos, ocupando, aproxidamente, 50% do território brasileiro. Inexiste no mundo floresta tropical com tamanha exuberância e grandeza de espécies vegetais e de animais. A flora amazônica é inigualável com cerca de 60.000 espécies vegetais, o que corresponde a 10% de todas as plantas do planeta. Incrível dizer que em apenas 1 Km2 de floresta amazônica pode-se encontrar mais de 1000 tipos de plantas.
Considerando a inigualável flora amazônica, vislumbra-se um imenso potential para o desenvolvimento de medicamentos derivados da floresta, conhecidos como fitoterápicos, ou mesmo princípios ativos isolados (fitofármacos). Fitoterápicos são definidos como medicamentos obtidos exclusivamente de matérias primas vegetais (RDC 148 de 16-03-2004). A Organização Mundial da Saúde (OMS) define fitoterápicos como “substâncias ativas derivadas da planta como um todo, ou parte dela, sob a forma de um extrato total.” No Brasil, o ministério da Saúde (MS) criou, no ano de 2009, o Programa Nacional de Plantas Medicinais pela portaria 2.960/2008. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) regulou o uso de fitoterápicos por uma regulamentação de 10 de março de 2010. 
Considerando que a Amazônia é um celeiro pouco explorado no que concerne ao seu potencial terapêutico, e o tem que ser de forma racional, para a obtenção de novos medicamentos e que o Brasil ainda importa 85% dos medicamentos que consome e ainda que, segundo dados do Banco Nacional e Desenvolvimento (BNDES), nosso país deve gastar cerca de 40 bilhões com importações de medicamentos nos próximos 10 anos, o desenvolvimento de pesquisas com fitoterápicos derivados da flora amazônica é uma área de grande interesse científico, clínico e comercial. 
Como pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal do Pará (UFPA), realizei, por mais de vinte anos, inúmeras pesquisas utilizando modelos experimentais de doenças neurológicas, incluindo o acidente vascular cerebral (AVC) e trauma da medula espinhal. Essas desordens neurais agudas, ou seja, doenças onde os neurônios morrem rapidamente, afetam milhares de pessoas anualmente, deixando milhões de indivíduos com sequelas neurológicas derivadas de um AVC, trauma raquimedular (lesão da coluna vertebral com comprometimento da medula espinhal) ou trauma cranioencefálico (lesão por trauma mecânico do cérebro). Mais de 70 mil pessoas ficam paraplégicas ou tetraplégicas no Brasil, anualmente. A cada ano, mais de 100.000 pessoas tem um novo AVC em nosso país.
O AVC é um problema de saúde pública mundial. Estudo recente feito em países da União Europeia (EU), mostrou que houve 1.12 milhões de casos de AVC em países pertencentes ao grupo, com 9.53 milhões de sobreviventes, aproximadamente meio milhão de mortes, e 7 milhões de pessoas com sequelas permanentes 1. Este estudo, estima-que haverá cerca de 40.000 novos casos de AVC nos países europeus até 2047, e um aumento de cerca de 27% do número de pessoas vivendo com sequelas de algum tipo de AVC. 
Outro estudo realizado pela American Heart Association mostrou que cerca de 7 milhões de americanos com mais de 20 anos tiveram AVC entre 2013 e 2016 com uma prevalência que aumenta com o avançar da idade em ambos os sexos 2. Esse mesmo estudo mostrou que mais de 3.4 milhões de americanos com mais de 20 anos terão um AVC até 2030, um aumento de 20.5 % de prevalência em relação a 2012, mostrando que, nos EUA, a prevalência de AVC pode não estar de acordo com os dados da OMS relatados acima. No Brasil, os estudos epidemiológicos são mais limitados, mas foram registrados 68 mil óbitos por ano decorrentes de AVC, de acordo com dados do Ministério da Saúde (MS, 2018). Os casos anuais podem passar de 100.000 em alguns estados. No Brasil, como no estado de São Paulo, os óbitos por AVC já superaram os por câncer e doenças do coração 3.
Considerando que o AVC é um grave problema de saúde pública no Brasil, pesquisas que visam o desenvolvimento de um neuroprotetor, ou seja, uma substância que proteja o cérebro evitando que o volume inicial da lesão aumente de tamanho, são de grande relevância científica e clínica. Esse fenômeno é chamado degeneração neural secundária. 
Os AVCs são classificados em isquêmico, onde o vaso sanguíneo é obstruído por um trombo a, ou hemorrágico, quando o vaso sanguíneo rompe, por exemplo, no caso de um aneurisma cerebral b. O AVC isquêmico é o mais frequente, correspondendo a mais de 80% dos casos. O AVC hemorrágico é o menos comum, mas o prognóstico neurológico é mais grave. Dependente do tipo de AVC, do local onde ocorre, os sintomas e prognóstico neurológico são diferentes. O paciente pode ter dor de cabeça (cefaleia), convulsões e entrar e coma mais frequentemente após um AVC hemorrágico. Sintomas neurológicos mais específicos, dependendo do local afetado no cérebro, são mais comuns em AVCs isquêmicos, entre os quais perda de visão (hemianopsia), visão dupla, fraqueza ou déficit sensorial, por exemplo de perceber tato, em um lado do corpo, problema para falar (disartria), convulsão mental, desorientação espacial e vários outros sintomas. Estes sintomas iniciais refletem o local afetado no cérebro. 
As pesquisas em neuropatologia experimental visam evitar a lesão secundária, de modo a minimizar os déficits funcionais para que não se tornem permanente, como normalmente ocorre. Em humanos, inexistem terapias eficazes, com excessão do trombolítico (alteplase) que desobstrui o vaso no caso do AVC isquêmico. Essa terapia é limitada, pois sua janela temporal é muito curta. O paciente com AVC isquêmico pode ser tratado com o trombolítico apenas poucas horas após o início dos sintomas. O tratamento tardio não pode ser feito, pois um efeito colateral sério pode ocorrer – o rompimento do vaso sanguíneo, o que chamamos tecnicamente de transformação hemorrágica. Uma outra abordagem promissora é a trombectomia, onde o neurocirurgião remove o trombo do vaso sanguíneo obstruído desobstruindo o vaso sanguíneo, restaurando o fluxo sanguíneo e evitando a lesão secundária. No entanto, esta técnica demanda expertise do neurocirurgião e uma unidade equipada e especializada no hospital. Esse procedimento não é realizado ainda na nossa cidade, por falta de estrutura nos hospitais. Mesmo a trombólise é basicamente não aplicada, pois os pacientes chegam aos hospitais que atendem pessoas com AVC muitas horas e mesmo dias após o surgimento dos sintomas, fora da janela terapêutica adequada.
O ideal seria que tivéssemos um medicamento com ação neuroprotetora que o paciente com AVC pudesse ser tratado logo no início da lesão, ao aparecimento dos primeiros sintomas. Esse medicamento agiria nos mecanismos cerebrais que contribuem para a expansão da lesão inicial, entre os quais a formação excessiva de radicais livres, uma neuroinflamação exacerbada, morte celular programada (apoptose), acidose tecidual e lesão causada por liberação excessiva de aminoácidos excitatórios, como o glutamato, no local e no entorno da lesão. Apesar de inúmeras pesquisas, nunca um neuroprotetor foi aprovado em humanos. 
Há muitos anos, um dos meus sonhos como pesquisador é desenvolver um neuroprotetor natural, derivado da flora Amazônica. Em meu laboratório na UFPA, agora na UFOPA, investigamos se derivados de plantas da Amazônia podem ter ação anti-inflamatória e neuroprotetora em modelos experimentais de AVC. Em 2010, orientei o biólogo Adriano Guimarães que investigou o efeito neuroprotetor do óleo de copaíba e um modelo de lesão aguda do cérebro de ratos. Em 2012, fomos o primeiro a mostrar um efeito anti-inflamatório e neuroprotetor docopaiba (Copaifera reticulata ducke) no sistema nervoso central 3. Mostramos que ratos com lesão cerebral que foram tratados com copaiba apresentaram menos infiltrado inflamatório e mais neurônios preservados, comparados aos animais controle (ilustração). Nos anos subsequentes, em colaboração com o Professor Raul Carvalho da Faculdade de Engenharia de Alimentos da UFPA, confirmamos nossos achados iniciais e realizamos estudos químicos detalhados sobre a composição química da copaíba. Além disso, mostramos que extratos obtidos de outras plantas da Amazônica possuem efeito similar. Estamos agora patenteando alguns destes achados e realizando novos estudos para chegarmos a um fitoterápico com ação neuroprotetora para AVC humano. Em alguns anos, esperamos colocar no mercado uma formulação com um neuroprotetor natural derivado da flora Amazônica.
A Amazônia e sua exuberante flora é uma fonte basicamente inexplorada de possíveis medicamentos para as mais diversas doenças humanas. A importância dessa biodiversidade não pode ser negligenciada. Isso não pode ser queimado, pela negligência daqueles que deveriam proteger as florestas. Os governos devem incentivar as pesquisas com biofármacos, para que nosso estado seja referência na indústria de fitoterápicos e/ou fitofármacos. No nosso novo laboratório do Instituto de Saúde Coletiva (ISCO) da UFOPA vamos atrás do sonho de desenvolver um medicamento para AVC derivado da flora Amazônica.
Notas
A trombo é uma massa estacionária formada por gordura, plaquetas e outros componentes que obstruem um vaso sanguíneo. A placa de ateroma que pode surgir na parede dos vasos sanguíneos (artérias e veias) e obstruí-las é um tipo de trombo. Quando essa massa estacionária se movimenta torna-se um êmbolo gerando a tromboembolia, uma causa de morte comum em doenças vasculares.
O aneurisma é uma dilatação patológica de um vaso sanguíneo, como uma veia, devido a alterações na parede do vaso. Ele pode romper originando um AVC hemorrágico que é muitas vezes fatal.
Referências
1 Wafa H, Wolfe C, Emmett ES et al. Burden of Stroke in Europe: Thirty-Year Projections of Incidence, Prevalence, Deaths, and Disability-Adjusted Life Years. Stroke 2020;51: 2418-2427. 
2 Virani SS, Alonso A, Benjamin EJ, et al. Heart Disease and Stroke Statistics-2020 Update: A Report From the American Heart Association. Circulation. 2020;141(9):e139-e596.
3 Lotufo PA. Stroke is still a neglected disease in Brazil. Sao Paulo Med J. 2015 Nov-Dec;133(6):457-9.
4 Guimarães-Santos A, Santos DS, Santos IR, Lima RR, Pereira A, de Moura LS, Carvalho RN Jr, Lameira O, Gomes-Leal W. Copaiba oil-resin treatment is neuroprotective and reduces neutrophil recruitment and microglia activation after motor cortex excitotoxic injury. Evid Based Complement Alternat Med. 2012; 2012:918174.

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