sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O estuprador de galinha e a ética do não- jornalista

A exposição de fotos de cadáveres em jornais ou blogs faz parte da sanha pela audiência fácil, a ponto de acharmos que estamos fazendo jornalismo. Mas em nenhum momento este indivíduo pensa na dor dos familiares que já estão sofrendo com a perda daquela pessoa.
J. Ninos e José Maria do PCdoB
Quando completei um ano como repórter da Rádio Rural, em 1985, tirei férias e fui a minha Belém natal. Eu já era, então, considerado um radialista, apesar de não ter qualquer diploma e podia frequentar as emissoras de Belém não como um simples visitante. Aproveitei para ver o trabalho dos novos colegas de profissão, pois buscava inspiração para fazer algo de novo quando do meu retorno a Santarém. Acabei entrando no estúdio de um programa policial que fazia sucesso, à época, na capital. Ao ver, ouvir e sentir o frenesi nos bastidores do programa, minha alma de pós-adolescente ficou excitada. Era aquilo que eu achava que queria!
Quando cheguei e trouxe a ideia para o meu gerente (à época, o ex-seminarista Eduardo dos Anjos, hoje colega de ofício no Fórum), ele logo rechaçou a proposta dizendo que não haveria como fazer um programa daquele, já que a delegacia local quase só registrava furtos de galinha e não haveria como alimentar um noticiário específico... A cidade era bem pacata, até aquele momento (logo depois começaria a onda de violência motivada por disputas em garimpos de Itaituba).
Sem contar que não pegava bem uma emissora católica ter um programa assim na sua grade de programação. Ponderei que além das notícias teria um quadro para a voz do povo, que chamei de “Broncas do Povão”, onde todos poderiam fazer denúncias contra as autoridades e que a Igreja local, à época, tinha forte inclinação para as teses da Teologia da Libertação, base dos movimentos sociais e sindicais.
Aí o gerente de programação da emissora, hoje meu grande amigo Jota Parente, apostou na minha ideia e abalizou meu projeto que acabou indo ao ar na forma do programa “Plantão da Cidade”, inicialmente com 10 minutos e era apresentado por mim, logo depois do tradicional Jornal do Meio-Dia da emissora (anos depois incorporou o JMD e passou a ter 45 minutos!). Começava a me firmar como uma “estrela” do Rádio, e isso podia ser perigoso...
Utilizando técnicas cênicas que adquiri com experiências de teatro amador na adolescência, incentivei a personificação de figuras fictícias com o apoio inicial do grande radialista e hoje jornalista graduado Clenildo Vasconcelos (apresentador do programa “Patrulhão da Cidade”, na Band local), com suas mil vozes.
Acrescentei a isso um pouco do deboche e da sátira absorvidos da leitura non-sense de crônicas do jornalista Carlos Eduardo Novaes e dos humoristas da revista Casseta Popular e jornal Planeta Diário (que muito depois chegariam à TV com o programa Casseta & Planeta). Misturei tudo à postura aguerrida que adquiri nos movimentos sociais, dando uma identidade polêmica ao programa, principalmente com as denúncias contra as autoridades da hora, mas sempre com humor. Sucesso imediato!
As notícias da delegacia também viravam um pouco de piada. No fundo eu fazia um pouco de sensacionalismo, sem perceber. Os nomes que me chegavam às mãos, das ocorrências políciais, eram matéria bruta que eu lapidava em notícias com músicas de duplo sentido mixadas, gargalhadas e comentários jocosos. Até o dia em que contei a história do estupro... de uma galinha!
Um adolescente fora flagrado no quintal do vizinho, no centro da cidade, no que parecia uma tentativa de roubo de galinhas. Mas, na verdade, estava satisfazendo suas necessidades sexuais com a pobre ave galinácea! Podem imaginar como tal notícia rendeu... Por dias, as pessoas me paravam na rua e riam da história. E eu satisfeito com o sucesso... até a hora que um advogado (que inclusive era um dos patrocinadores do programa) me contou que o rapaz era seu vizinho e que ficou traumatizado. Não saía mais de casa, pois era execrado por todos por causa do flagrante. Até seu pai o humilhava!
Naquele dia descobri que o buraco era mais embaixo... Fui tomado por um remorso e percebi que ser um homem da comunicação tinha uma responsabilidade muito maior do que eu imaginava. O programa continuou, mas passei a evitar o escárnio com as histórias de pessoas envolvidas em incidentes do chamado mundo-cão.
Continuei só no ataque aos políticos, virei minha bateria de galhofas só para eles, pois a população atpe hoje acredita que jornalistas e radialistas são super-heróis, e podem resolver tudo! Para tanto, criei com o Clenildo o personagem Honestino Honesto da Silva, que era um político calhorda e demagogo. Uma sátira aos políticos. E até fui processado por um político que se sentia ultrajado com minha postura, sem olhar pro próprio rabo. Mas a família do rapaz (da galinha) que ridicularizei nunca nem pensou em me processar, o que era um desatino...
Contei toda essa história para situar a todos os que trabalham hoje com a produção de informação, seja em que meio for, que há um momento em que se deve por a mão na consciência e perceber que a utilização do grotesco pode se tornar uma prática vil, quando se desrespeita os princípios da dignidade humana. É o que se vê hoje em matérias de jornais sensacionalistas e de blogs na internet, onde a picardia, a exposição de cenas ultrajantes, e de textos sem pé nem cabeça, nada contribui para a evolução dos leitores.
A utilização deste expediente serve apenas para aguçar a tendência do ser humano pela tragédia, pelo inusitado, pela desgraça... dos outros. Pois a mesma pessoa que adora ver a foto de uma menina de 10 anos, estuprada e carbonizada num blog, não gostaria que isso acontecesse com um ente seu. A intenção de quem publica tal cena, pode até ser a de acender a revolta contra o autor do crime (o que por si só já é incitação à violência, à barbárie).
A exposição de fotos de cadáveres em jornais ou blogs faz parte da sanha pela audiência fácil, a ponto de acharmos que estamos fazendo jornalismo. Mas em nenhum momento este indivíduo pensa na dor dos familiares que já estão sofrendo com a perda daquela pessoa, e que podem se ver obrigados a ter um pedaço de sua carne exposta nas janelas da ignorância internáutica. Será que o autor da notícia aprovaria se um colega seu fizesse o mesmo, com alguém da sua família que vivesse a mesma situação?
Fui jornalista sem diploma de 1984 a 2010. Já quarentão, sentei nos bancos escolares tendo sempre como ícone o grande Milton Corrêa, o nosso Miltinho, que continua em busca do conhecimento, enfrentando todas as intempéries que a idade e outros problemas de saúde podem trazer. E não foi pelo diploma, mas foi para absorver as teorias e depurar os princípios éticos que todos temos, mesmo que escondido no recôndito de nossa alma. Consciência que comecei a adquirir no dia do episódio da galinha estuprada.
A ética do não-jornalista não é diferente da do diplomado. Mas com certeza, o processo de depuração pode ser adquirido nas experiências do dia-a-dia, bem como nos bancos da escola. Quando alguém chama a atenção para o desvio de conduta moral e ética, não basta se indignar e contra-atacar de maneira sórdida, ofendendo com mentiras seu acusador. Isso apenas demonstra que tal pessoa é tão humana quanto qualquer um. Mas precisa descer do pedestal de sua ignorância, antes de perder de vez sua humanidade e tornar-se uma besta selvagem, que vaga só pelos campos da incoerência.
Para quem não sabe, denunciei tal postura de um blogueiro local, e tenho sido vítima de achaques infames, que não pretendo responder. Ataques gratuitos a pessoas que repudiam as atitudes de qualquer profissional que ofende a dignidade humana, não podem ser resolvidas com pugilato midiático, como incentivaram outros blogueiros. Isso seria transformar um debate sério em algo que eu mesmo pensei execrar: o sensacionalismo exacerbado.
Por isso apresento este texto, como contribuição a todos, inclusive a pessoa que insiste em se engasgar do seu próprio xarope... A tentativa de reflexão é possível, mesmo para quem não tenha elementos cognitivos suficientes. A inteligência é um estado de espírito inerente do ser humano, e pode se apresentar em nossas atitudes, basta que tenhamos disposição de que isso aconteça. Já a intransigência é filha da ignorância e mãe de toda decadência. Para estas, só a Justiça tem a resposta certa.

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