sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ex-assessor de Bolsonaro confirma rachadinha na família do presidente


Em um sobrado simples em uma rua de terra batida no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, um ateliê de costura improvisado divide espaço com um amontoado de papéis, recortes de jornal e e lembranças dos mais de trinta anos de trajetória política de Jair Bolsonaro (PL). Entre roupas para conserto e croquis para a confecção de equipamentos de voo livre, mora, sozinho, o aposentado da da Marinha Mercante Waldir Ferraz, 1,88 metro, magérrimo e autointitulado o amigo “Zero Zero” do presidente da República. Jacaré, o apelido que ganhou desde os tempos em que acompanhava o ex-capitão na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, não é um bolsonarista qualquer. Ele é bolsonarista antes de Jair ter entrado para a política, antes de o bolsonarismo ter virado uma ideologia para pelo menos 20% dos brasileiros e antes de os filhos e ex-mulheres terem se tornado um motivo frequente de dor de cabeça para o presidente. A amizade entre os dois começou há mais de três décadas a partir da insatisfação que ambos compartilhavam com os baixos salários pagos aos oficiais. Desde então, só se fortaleceu.

“Ela (Ana Cristina Valle) fez nos três gabinetes. Em Brasília, aqui no Flávio e no Carlos. Ela que fazia, mas quem é que assinava? Quem assinava era ele (Jair Bolsonaro). É batom na cueca.” Waldir Ferraz.

Jacaré guarda como relíquias os convites para a primeira posse de Bolsonaro como vereador e para o casamento dele com a primeira-dama, Michelle. Mais importante: mantém intactas a intimidade e a conversa franca com o amigo poderoso.

“O tempo todo ele me chama de 71 (corruptela do artigo que define o crime de estelionato), e eu respondo: ‘Eu não sou político, você é que é’.”

Pelas mãos do ex-ca­pitão, Jacaré foi contratado para trabalhar nos gabinetes de Bolsonaro na Câmara dos Deputados e de Carlos Bolsonaro na Câmara de Vereadores do Rio — e também recebeu duas condecorações do governo federal, uma delas das mãos do próprio presidente, por “serviços meritórios e virtudes cívicas”. Sem cargo público, ele hoje brilha como expoente do grupo de inteligência particular de Bolsonaro. Diariamente, encaminha, quase sempre antes das 6 horas da manhã, toda sorte de denúncias e suspeitas ao número pessoal do presidente, salvo em sua lista de contatos como JB BR 4. Os dois têm até um código específico para tratar de conspirações e movimentações políticas. “Como tá o clima aí?” é a senha disparada por Bolsonaro, que em seguida recebe informes sobre possíveis apoios para a campanha.

As conversas também são presenciais. Desde a época da transição de governo, Jacaré é frequentador assíduo dos palácios. Na última terça-feira, 18, ele esteve no Planalto, onde se reuniu com o presidente e, segundo ele, colocou os assuntos em dia. É com essa autoridade de quem compartilha da intimidade e da história de vida de Bolsonaro que Jacaré contou a VEJA detalhes do notório esquema da rachadinha, um dos principais motivos de desgaste para Bolsonaro desde o início de seu mandato presidencial. Em encontros no Rio de Janeiro e em Brasília, nos quais as conversas foram gravadas, Jacaré declarou que houve rachadinha nos gabinetes de Jair, Flávio e Carlos Bolsonaro e afirmou que a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente, foi quem organizou e comandou a arrecadação irregular de parte dos salários dos servidores, prática que configura o crime de peculato. Jacaré disse ainda que o presidente foi traído e não sabia dos rolos da ex-esposa, que ainda hoje chantageia Bolsonaro, pedindo dinheiro para manter o seu silêncio. “Ela fez nos três gabinetes. Em Brasília, aqui no Flávio e no Carlos. O Bolsonaro deixou tudo na mão dela para ela resolver. Ela fez a festa. Infelizmente é isso. Ela que fazia, mas quem é que assinava?”, pergunta Jacaré. Quem assinava era ele. Ele vai dizer que não sabe? É batom na cueca. Como é que você vai explicar? Ele está administrando. Não tem muito o que fazer”, acrescenta, referindo-se a Jair Bolsonaro.

De acordo com Jacaré, a rachadinha entrou nos gabinetes da família do presidente ainda na década de 90, quando ele exercia mandato de deputado federal. Naquela época, Ana Cristina, então casada com um sargento, começou a se aproximar de Bolsonaro, quando participava de um movimento de mulheres de militares que reivindicava aumento no soldo dos maridos. Jacaré conta que ela foi se “infiltrando” e rapidamente ganhou a confiança de Bolsonaro, com quem iniciou um relacionamento amoroso. Logo, Ana Cristina recebeu carta branca para administrar o gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Teria começado aí a história de décadas de rachadinha na família presidencial. Segundo Jacaré, o esquema funcionava da seguinte maneira: responsável por uma cota de contratações, Ana Cristina recolhia documentos de algumas pessoas, abria contas bancárias em nome delas e embolsava grande parte de seus salários. Muitas vezes, o funcionário era fantasma e nem sequer tinha conhecimento de que estava oficialmente empregado no gabinete de Bolsonaro. Jacaré alega que quem já trabalhava com o ex-capitão antes da chegada de Ana Cristina, como ele, não participava do esquema.

“Ela é muito perigosa. É uma mulher que quer dinheiro a todo custo. Às vezes, ela vai ao cercadinho, frequenta o cercadinho. É uma forma de chantagem. A gente nem toca nesse assunto pra não deixar o o cara de cabeça quente.” Waldir Ferraz.

“A jogada dela era a seguinte: ‘Quer ganhar um dinheiro? Te dou 1 000 reais por mês. Me empresta seu documento aí’. Pegava a carteira do cara que estava entrando na Câmara, recebia 8 000, 10 000, e dava 1 000 (reais) pro cara.” Leal a Bolsonaro, Jacaré faz questão de ressaltar que o presidente nada sabia das traficâncias da ex-mulher. Nem ele nem seus filhos. Em sua tese de defesa, o Zero Zero argumenta que os parlamentares se preocupam apenas com a atividade política, deixando a rotina do gabinete para pessoas de confiança. “Ele, quando soube, ficou desesperado, era uma fria. O cara foi traído. Ela que começou tudo. Bolsonaro nunca esteve ligado em nada dessas coisas. O cara não tinha visão do que estava acontecendo por trás no gabinete”, diz Jacaré. “Às vezes o chefe de gabinete faz merda, e o próprio deputado não sabe. Mesmo o deputado vagabundo não sabe, só vem a saber depois.” Pelo relato do ex-as­sessor, Bolsonaro só veio a saber muito tempo depois. Na verdade, décadas depois — mais precisamente em novembro de 2018, após conquistar a Presidência da República. Confrontado com a gravidade da história, o amigo diz que o ex-capitão teria entrado em contato com o esquema de rachadinhas nos gabinetes da família só depois da revelação pelo jornal O Estado de S. Paulo do relatório do Coaf que registrava movimentações milionárias do policial aposentado Fabrício Queiroz, acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro de ser o operador no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj. Apenas ali ele teria puxado o fio de toda a meada. Como todo marido enganado, Bolsonaro teria sido o último a saber. De acordo com Jacaré, Queiroz, que também é amigo do presidente há mais de trinta anos, substituiu Ana Cristina como responsável pela arrecadação dos salários dos servidores, continuou o esquema sem o chefão saber. Detalhe: a ex-mu­lher de Bolsonaro nunca trabalhou oficialmente para o Zero Um, mas teve parentes empregados no gabinete dele na Alerj até 2018 e que hoje estão sob investigação do MP do Rio. Depois da passagem pela Câmara dos Deputados com Jair, Ana Cristina foi chefe de gabinete do vereador Carlos Bolsonaro por sete anos. Ela e o Zero Dois, aliás, também são investigados pelo MP pela prática de rachadinha. Antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) praticamente devolver à estaca zero a apuração sobre o esquema no gabinete de Flávio, o filho mais velho do presidente foi denunciado por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização criminosa. Já Queiroz chegou a ser preso preventivamente enquanto se refugiava num imóvel de Frederick Wassef, formação de quadrilha e organização criminosa. Já Queiroz chegou a ser preso preventivamente enquanto se refugiava num imóvel de Frederick Wassef, advogado de Jair e Flávio Bolsonaro. Jacaré conta que, ainda no governo de transição, Bolsonaro ouviu de um auxiliar que o Zero Um poderia ser condenado a vinte anos de cadeia e ficou entre preocupado e emocionalmente ragilizado diante da previsão. Desde então, o caso paira como uma sombra ameaçadora sobre o presidente, eu governo e sua família. E, desde então, nas palavras do amigo, Bolsonaro vive “na corda bamba” e tem convicção de que ninguém acreditará que ele e os filhos não sabiam de nada do que ocorria dentro de seus respectivos gabinetes. “Não tem como reagir. Vai fazer o que para desmanchar isso aí? É como um beco sem saída. Ela fez uma m.., eles assinaram sem saber, e agora vão pagar caro por isso”, afirma Jacaré, sempre responsabilizando Ana Cristina. “Acho que ele vai ter problema se não for reeleito. Vai tudo cair, vai perder o foro privilegiado e tal.”

“Não sou mentora da rachadinha. Ele (Bolsonaro) me chamava de sargentona, mas quem assina as nomeações e exonerações é o parlamentar. Não faz sentido assinar sem ler porque todos eles são bem instruídos.” Ana Cristina Valle.

Íntimo do clã presidencial, Jacaré diz ainda que Ana Cristina chantageia o presidente. Exige dinheiro e outras vantagens para não contar o que sabe. Ela teria, inclusive, ido algumas vezes ao cercadinho do Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro interage com apoiadores, para ser vista e percebida pelo mandatário. Só para lembrá-lo, de acordo com Jacaré, dos segredos que unem os dois até hoje e podem complicar a vida do ex-marido. “Ela é muito perigosa. É uma mulher que quer dinheiro a todo custo. Às vezes, ela vai ao cercadinho, frequenta o cercadinho. É uma forma de chantagem, lógico que é chantagem. A gente nem toca nesse assunto pra não deixar o cara de cabeça quente”, acusa.

A relação de Bolsonaro com a ex-mu­lher, de fato, não é das mais tranquilas. Os dois se envolveram num divórcio litigioso em que, conforme revelado por VEJA em 2018, Ana Cristina o acusou de, entre joias e outras coisas, ter um patrimônio incompatível com a própria renda. No processo, ela anexou uma relação de bens e a declaração do imposto de renda do ex-marido, mostrando que o patrimônio do casal incluía três casas, um apartamento, uma sala comercial e cinco lotes de terra que o deputado havia esquecido de relatar à Justiça Eleitoral. Sua remuneração mensal, por exemplo, seria de 100 000 reais, quase três vezes mais do que ele recebia, na época, como parlamentar e aposentado do Exército. Acusada agora por Jacaré de chefiar a rachadinha em três gabinetes da família, Ana Cristina não disse à Justiça de onde vinha a diferença de valores e recuou dessa história, dizendo que estava brava com o ex-marido.

Nos últimos tempos, embora distantes, Bolsonaro e Ana Cristina não se atacam. Após a separação, ela viveu um tempo no exterior, casou-se outra vez e em 2018, utilizando o sobrenome Bolsonaro, tentou uma vaga na Câmara dos Deputados. Obteve apenas 4 555 votos e fracassou. Em agosto do ano passado, VEJA revelou que Ana Cristina vive em uma confortável mansão no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, com o filho Jair Renan, o Zero Quatro, também investigado por receber vantagens de empresários com interesses no governo federal. “Ela também usa o menino para fazer dinheiro, dispara Jacaré.

Na terça-feira 18, durante uma conversa por telefone com VEJA, Ana Cristina negou que tenha comandado esquemas de rachadinha, que chantageie Bolsonaro e disse que as acusações partem de inimigos que querem atingir os “meninos” Flávio e Carlos. “Se eu tiver que falar com o presidente, acha que eu vou para o cercadinho para todo mundo ficar vendo, para jornalista ficar vendo? Sou discreta”, declarou. Apesar de alegar inocência e entoar um discurso em defesa do ex-ma­rido e dos enteados, ela fez questão de arrematar sua defesa com a seguinte ponderação: “Não sou mentora da rachadinha. Ele (Bolsonaro) me chamava de sargentona, mas quem mandava no gabinete era ele. Quem assina as nomeações e exonerações é o parlamentar. Não faz sentido assinar sem ler porque todos eles são bem instruídos”.

Jacaré, que nada tem de inimigo do presidente, mantém-se vigilante. Municiar Bolsonaro com informações de coxia, que ele considera relevantes, sempre foi uma de suas missões. Não raro, o ex-capitão recebe os dados e as ideias de Jacaré e sai repetindo por aí. Numa tentativa de demonstrar quão zeloso ele é, o amigo do presidente diz ter sido decisivo para convencê-lo de que o ex-ministro Gustavo Bebianno, morto em março de 2020, estava por trás de um plano para assassinar Bolsonaro, que seria executado por Adélio Bispo, o autor da facada no ex-capitão às vésperas da eleição de 2018. Segundo a tese de Jacaré, Bebianno queria, com a morte do então candidato, ser ungido seu substituto na corrida presidencial. Ao descobrir o plano, ele teria contado detalhes da trama para o presidente e seu filho Carlos. Bolsonaro, de fato, ouviu essa história, tanto que mencionou a existência de uma conspirata para matá-lo em entrevista concedida a VEJA em 2019 — e falava explicitamente na participação de “quem estava do meu lado”. Candidato à reeleição, o presidente espera explorar politicamente na próxima campanha o atentado a faca que sofreu. Ele quer usar o episódio para requentar a tese de que Adélio agiu a mando de alguém e vender a versão de que ele, Bolsonaro, enfrenta uma oposição sem limites de forças ocultas a serviço do sistema.

“É como um beco sem saída. Ela fez uma m…, eles assinaram sem saber, e agora vão pagar caro por isso. Acho que ele vai ter problema se não for reeleito. Vai tudo cair, vai perder o foro privilegiado e tal.” Waldir Ferraz.

O problema dessa tese é que a própria Polícia Federal, durante o atual governo, concluiu que Adélio agiu sozinho deu a questão da autoria por encerrada. Já o caso das rachadinhas continua em aberto e caiu no gosto popular, especialmente a informação de que Queiroz, o operador do esquema, depositou 89 000 reais para a primeira-dama Michelle. O presidente disse que esse dinheiro era parte do pagamento de uma dívida que Queiroz tinha com ele. Até aqui, a família Bolsonaro alega que as denúncias são infundadas, visam a desestabilizar o governo e partem de adversários. As declarações de Jacaré a VEJA põem em xeque essa versão. Não é um inimigo falando. O Zero Zero pode ser acusado de um monte de coisas, menos de não compartilhar da intimidade, da amizade e da história de vida de Bolsonaro. Procurado, o presidente não se manifestou até o fechamento desta edição.

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com informações VEJA

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